Como combater a violência doméstica discutindo masculinidade

16 de fevereiro, 2017

Nova cartilha elaborada pelo núcleo de direitos das mulheres da Defensoria Pública de São Paulo propõe reflexão aos homens como meio de prevenir agressões

(Nexo, 16/02/2017 – acesse no site de origem)

A faceta mais conhecida da Lei Maria da Penha, que criminaliza a violência doméstica contra as mulheres, está nos artigos que determinam a proteção legal e o acolhimento das vítimas e, paralelamente, a punição dos companheiros ou ex-companheiros autores da violência. Menos conhecidas, entretanto, são as medidas previstas pela lei destinadas a “educar” os homens.

Como forma de evitar que a violência aconteça, o Nudem (núcleo especializado de promoção e defesa dos direitos da mulher da Defensoria Pública de São Paulo) lançou no dia 9 de fevereiro a cartilha “Vamos falar sobre masculinidade?”.

Além de estar disponível on-line, 10 mil exemplares impressos foram encaminhados para todas as unidades da Defensoria Pública do Estado, com o objetivo de gerar discussões nos municípios e bairros, estimulando o trabalho de conscientização feito com os homens pela própria defensoria ou organizações feministas já existentes.

Na ocasião do lançamento, o órgão promoveu duas rodas de conversa nos municípios de Santo André e Ferraz de Vasconcelos, ambos na região metropolitana de São Paulo. Em Ferraz, será criado um fórum aberto para homens dispostos a debater o assunto.

A ideia é que o material seja adotado nesses grupos e que chegue inclusive aos homens sem nenhuma condenação ou passagem por violência doméstica, incentivando-os a discutir de que forma o padrão de masculinidade aprendido desde cedo os torna violentos em suas relações com mulheres, mas também com outros homens.

A defensoria atende mulheres em situação de violência doméstica, ingressando com pedidos de medidas protetivas (como afastar o agressor da mulher e filhos ou encaminhar vítimas para abrigos específicos) e ações de família e cíveis. Aos homens que cometeram atos de violência contra as companheiras, a defensoria paulista presta um serviço de assistência jurídica e pode ajudá-los a buscar tratamento psicológico.

“A criminalização [da violência] não basta. Temos dez anos de Lei Maria da Penha e, embora tenhamos conseguido avançar muito nos equipamentos e políticas públicas de acolhimento e proteção para as mulheres, ela não faz com que automaticamente haja menos violência” diz Yasmin Pestana, coordenadora auxiliar do Nudem e co-autora da cartilha, em entrevista ao Nexo.

A intervenção do direito penal é necessária para conter a violência doméstica, mas, segundo Pestana, é o último recurso e só deve ser acionado quando todas as outras instâncias — como a educação sobre igualdade de gênero nas escolas e a reflexão dos homens sobre a masculinidade violenta — não funcionarem.

O que há na cartilha

Em 26 páginas, o material explica didaticamente como o gênero — os papéis associados e cobrados pela sociedade referentes ao que é “ser homem” ou “ser mulher” — é construído socialmente. Lança a pergunta sobre o que significa “ser homem” na sociedade e contrasta o que é esperado da masculinidade e da feminilidade.

“Por que os homens têm que mostrar coragem e força enquanto as mulheres, fragilidade e dependência? Todo homem nasce forte e corajoso? Toda mulher é frágil e dependente? Tem que ser assim? Se existem mulheres e homens que nascem diferentes disso, como podemos afirmar que esses traços são naturais (…)?”, questiona o material da defensoria. A seguir, é feita a relação entre a masculinidade e a violência como um todo e, mais especificamente, com a violência doméstica.

Após a apresentação de conceitos e dados sobre violência cometida por homens, o material sugere formas de mudar comportamentos controladores, agressivos e abusivos e dá as coordenadas para os Serviços de Acolhimento e Reflexão para Homens Autores de Violência Doméstica, espaços já existentes para se debater masculinidade e violência.

‘Homem não chora’

A máxima de que “homem não chora”, ou o estímulo para que meninos resolvam conflitos, desde cedo, fazendo uso da força e da agressividade, a crença de que um homem não deve demonstrar medo ou fragilidade, de que ele deve ter sempre a última palavra e não aceitar o questionamento de sua autoridade na família são comportamentos que, como aponta a cartilha da defensoria, não têm nada de natural. São ensinados aos meninos, seja por meio de falas ou de ações que são reproduzidas.

Também se ensina que essa masculinidade é o outro lado da moeda de uma feminilidade dócil, passiva e, segundo o material, tida como inferior — daí “mulherzinha” ter conotação de xingamento. Por fim, masculinidades diferentes desse padrão são coibidas.

“Há mais de uma forma de ser homem, por isso a cartilha começa questionando o que é ser homem. Desde pequenos, quando tem uma briga na escola, os pais dizem [aos meninos] que tem que revidar. Tudo isso vai construindo a personalidade e tira a humanidade e a plenitude dos homens. Essa educação machista afeta os relacionamentos”, diz Yasmin Pestana.

Uma das conclusões de um relatório de 2016 do Instituto Promundo, uma ONG que trata da igualdade de gênero e prevenção da violência, diz que, sobretudo nas comunidades de baixa renda no Rio de Janeiro, com altas taxas de homicídio, meninos são encorajados a acreditar que recorrer à violência é uma característica necessária para ser “um homem de verdade”.

Essa exposição à violência na infância tem alta probabilidade de torná-los homens adultos violentos, inclusive com suas parceiras, segundo o relatório da ONG.

Qual é a relação entre masculinidade e violência

Muitas vezes, as pressões impostas pela masculinidade tradicional reverberam em episódios de violência por o homem não conseguir expressar o que sente, achar que tem que dar a palavra final, controlar o corpo da mulher, aonde ela vai e o que veste, explica a defensora.

Mas essa masculinidade padrão não afeta somente o relacionamento entre homens e mulheres. A violência contra LGBTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros), a violência no trânsito e a violência urbana são majoritariamente cometidas por homens. Segundo o Mapa da Violência de 2015, 94,2% das vítimas de homicídio por armas de fogo no país, em 2012, eram homens, 59% deles entre 15 a 29 anos. A maior parte das mortes em locais públicos decorrente da violência urbana ocorre principalmente entre jovens do sexo masculino, a maioria negros. A cartilha conclui que “a violência nas ruas, à vista de todos, é uma forma de ser homem”.

Da mesma forma, e pela mesma razão — a masculinidade violenta —, a cartilha aponta que as mulheres são as vítimas mais prováveis da violência sofrida em casa, quase sempre por parceiros, ex-parceiros ou familiares homens.

“A insegurança, a violência psicológica e física e, em casos mais extremos, a morte de mulheres se dá pelas mãos de homens, ‘machos’ que aprenderam a ser agressivos quando crianças, que são agressivos na rua e, em casa, acabam sendo do jeito que aprenderam ser: agressivos com suas companheiras, pais, irmãos, filhos etc. (…) A convivência gera conflitos, e se os homens foram educados, toda a vida, a tratar conflitos com agressividade e violência, é praticamente automática a reprodução desse comportamento em casa”
Trecho da Cartilha ‘Vamos falar sobre masculinidade?’ Defensoria Pública de São Paulo

O sociólogo americano Michael Kimmel também elaborou a relação entre masculinidade e violência, especificamente nos episódios de tiroteios em massa. A relação entre masculinidade, saúde mental e, no caso americano, o fácil acesso a armas de fogo, resulta nos diversos episódios de homicídio em massa em escolas e outras instituições, cometidos por homens.

O que a Lei Maria da Penha prevê com relação aos homens

A lei, em vigor desde 2006, inclui os homens no combate à violência doméstica por meio da criação de grupos de educação e reabilitação para homens autores de violência doméstica, prevista pelos artigos 35-V e 45.

Alguns grupos como esse já existem, como a Organização Social de Saúde “Casa de Isabel”, no bairro paulistano do Itaim Paulista, e o programa “E agora, José?”, em Santo André. Nomes e endereços de outros grupos na capital e na Grande São Paulo podem ser encontrados na cartilha.

Neles são discutidos, segundo informa o material da defensoria, temas do cotidiano e sofrimentos decorrentes das pressões dos papéis sociais que a masculinidade obriga os homens a seguir.

Juliana Domingos de Lima

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