Este estudo propõe uma reflexão sobre as narrativas de homens denunciados por crimes previstos na Lei Maria da Penha. Seu objetivo é analisar de que forma eles pensam as situações de violência doméstica e familiar contra mulheres e como isso está relacionado aos modelos de masculinidade e feminilidade vigentes em nossa sociedade. Os entrevistados da pesquisa foram agressores encaminhados à ONG Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, em São Paulo, para participar de grupos reflexivos do Programa de Responsabilização de Homens Autores de Violência contra a Mulher.
(Nexo, 28/06/2017 – acesse no site de origem)
A autora destaca duas conclusões principais: há uma diversidade de perfis de homens denunciados por violência contra a mulher e os conflitos relatados muitas vezes se originam de situações em que as mulheres não estavam em conformidade com o que era esperado de “uma boa mulher”, o que geralmente se relaciona ao cuidado do lar e da família e a questões ligadas à “moralidade” sexual.
1.A qual pergunta a pesquisa responde?
A pesquisa se localiza entre os estudos que abordam a questão da violência contra a mulher no contexto brasileiro. Em síntese, além da promulgação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), que busca coibir crimes de violência doméstica e familiar contra mulheres, o Brasil possui experiências localizadas de intervenção com homens denunciados por tais crimes. Em São Paulo, a ONG Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, conhecida por seu trabalho pioneiro em saúde sexual e reprodutiva e direitos das mulheres, vem desde 2009 realizando o que chamam de “grupos reflexivos” com homens encaminhados pela Vara Central de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, do Fórum Criminal da Barra Funda. Na pesquisa, abordo sobretudo os núcleos de significado presentes nas falas dos homens participantes, tendo por objetivo enxergar de que forma os mesmos pensam as situações de violência por eles vivenciadas e em que medida elas nos informam sobre questões relacionadas aos modelos de masculinidade (e feminilidade) vigentes em nossa sociedade.
2.Por que isso é relevante?
A contribuição do estudo reside em alargar nossa compreensão sobre o fenômeno da violência contra a mulher, pensando sobre um polo da relação pouco interrogado. Em outras palavras, muitos dos estudos sobre a temática – inegavelmente importantes para o debate – centram-se principalmente na figura das mulheres denunciantes e dos serviços de atendimento à mulher, oferecendo pouca interlocução com os demais sujeitos que compõem esse cenário. Nesse sentido, a pesquisa se faz relevante ao demonstrar como tais atores pensam seu lugar no campo e como se relacionam com suas denunciantes, os operadores do direito e outros serviços, fortalecendo e questionando determinados modelos de masculinidade, feminilidade e conjugalidade. Na contemporaneidade e no campo de reflexão e enfrentamento da violência contra mulheres, um olhar sobre a questão das masculinidades se faz mais do que urgente.
3.Resumo da pesquisa
Este estudo propõe uma reflexão sobre as narrativas de homens denunciados por crimes previstos pela Lei 11.340/2006 (denominada também como “Lei Maria da Penha”), encaminhados à ONG Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, em São Paulo, para participar do Programa de Responsabilização de Homens Autores de Violência contra a Mulher. Nesta pesquisa, visualizo a questão da violência de gênero sob um ângulo ainda pouco explorado, uma vez que meu olhar situa-se não sobre as denunciantes (não raramente cristalizadas como “vítimas”), mas sobre os denunciados/“agressores”. No decorrer do trabalho, demonstro como as narrativas verbalizadas nas reuniões do referido grupo reflexivo evidenciam ideias sobre masculinidade, feminilidade, violência, família e conjugalidade, além questionarem a legitimidade da Lei 11.340/2006, através da desestabilização da categoria “vítima”. O estudo igualmente visa contribuir com uma discussão metodológica no tocante aos limites e às experimentações do trabalho de campo, produzindo ao mesmo tempo uma reflexão sobre as/os antropólogas/os enquanto sujeitos “generificados”.
4.Quais foram as conclusões?
Ao trabalhar as narrativas dos participantes dos grupos reflexivos, percebemos que não se trata de acessar a verdade dos acontecimentos, mas de nos aproximar da maneira como eles são pensados e rememorados por tais sujeitos. Isso se faz pertinente na medida em que evidencia as lógicas colocadas em ação durante e após os conflitos vivenciados pelos homens, bem como esclarece sobre como sua maneira de agir e se entender é informada por certas expectativas de gênero. No caso dos homens acompanhados nos grupos reflexivos do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, entre algumas das conclusões possíveis, pode-se indicar no mínimo duas:
1) O homem denunciado por crimes de violência contra a mulher não possui um perfil específico, caracterizado por classe, cor/raça ou religião. O público denunciado é significativamente diverso, tendo em comum histórias conflituosas com parceiras e ex-parceiras;
2) Não raramente os conflitos relatados se originam de situações nas quais as mulheres não estiveram em conformidade com o que era esperado de “uma boa mulher”, o que geralmente estava relacionado ao cuidado do lar e da família e também com questões relacionadas à “moralidade” sexual.
5.Quem deveria conhecer seus resultados?
Os resultados da pesquisa podem fundamentar discussões sobre masculinidades e questões de gênero em escolas, bem como auxiliar os gestores de políticas públicas no enfrentamento à violência contra a mulher e na elaboração de trabalhos com homens que foquem a desconstrução de masculinidades violentas. No mais, faz-se pertinente que o debate seja incorporado às discussões de outras ONGs que trabalham com gênero e sexualidade. Sobretudo as reflexões indicadas aqui devem chegar aos próprios homens, com a perspectiva de lhes causar incômodo e reflexão.
Isabela Venturoza de Oliveira é doutoranda pelo PPGAS/Unicamp (Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas) e mestre em Antropologia Social pela USP (Universidade de São Paulo). É pesquisadora do Numas (Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença) da USP e do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu da Unicamp. Suas pesquisas abordam principalmente temáticas relacionadas a questões de gênero, violência e feminismo.