(Cosmopolitan, 26/07/2016) Nós da COSMO entendemos a importância do tema e acreditamos no dever da sociedade de se unir para mudar essa realidade. Esperamos que a atual mobilização contra a cultura do estupro não seja passageira, e que sigamos unidas no combate à violência contra a mulher, até que não seja mais uma rotina.
No Brasil, a cada 11 minutos uma mulher é estuprada, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Além disso, de acordo com levantamento divulgado pelo IPEA em 2014, apenas 10% dos casos desse tipo de violência chegam ao conhecimento da polícia, 89% das vítimas são do sexo feminino e 70% dos crimes são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos. A maioria dos estupros é praticada por indivíduos do sexo masculino. Diante das estatísticas, é inevitável perguntar: Quais motivos pode haver para isso?
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Temos duas hipóteses:
1. Infelizmente, existem muitos delinquentes, monstros e doentes no mundo. No Brasil, provavelmente, o número é superior ao de muitos países.
2. Há algo na sociedade brasileira que faz com que um grande número de estupros aconteça.
Afirmação 1
“A literatura nos mostra que na maioria dos casos de estupro os agressores são ‘homens normais’, que dizem não tolerar a ocorrência desse tipo de violência”, afirma Arielle Sagrillo Scarpati, que pesquisa os motivos pelos quais pessoas que cometem violência sexual não enxergam seus atos como violentos. “Eles não se veem como possíveis agressores porque se recusam a reconhecer a real definição de estupro”, diz. Portanto, a afirmação de que quem comete esse crime são pessoas psicologicamente desequilibradas não possui nenhum respaldo científico.
Afirmação 2
“Graças a um ambiente muito propício — um caldo que inclui normas sociais e de gênero, valores, assim como discursos e práticas —, somos ensinados a relativizar a gravidade (e as consequências) da violência, a duvidar da vítima e a atribuir a ela a responsabilidade pelo ocorrido”, diz Arielle. Qual outra palavra poderia ser usada para traduzir esse “caldo”? CULTURA, o conjunto de crenças, costumes e valores morais de uma sociedade. Isso nos leva a um termo usado pelas feministas dos anos 70, que ganhou voz no último mês: CULTURA DO ESTUPRO. O assunto é tão fundamental que a ONU Mulheres recentemente publicou a seguinte definição em sua página: “‘Cultura do estupro’ é um termo usado para abordar as maneiras em que a sociedade culpa as vítimas de assédio sexual e normaliza o comportamento violento dos homens”.
Uma sociedade que diz que se uma mulher bebeu demais “abriu possibilidades” para ser violentada, ao mesmo tempo que fala que se um homem bebeu demais e transou com uma mulher contra a vontade dela foi porque “não conseguiu se segurar”, é uma sociedade que exemplifica a explicação da ONU.
Usar o termo cultura é uma forma de traduzir o fato de que os valores sociais em vigor acabam por naturalizar a violência contra a mulher. É verdade que, a princípio, o estupro é condenado socialmente — pergunte a qualquer pessoa e será muito difícil encontrar alguém que se diga a favor desse tipo de violência. MAS O QUE É ESTUPRO? Arielle, baseada em sua pesquisa, explica:
“O ESTUPRO CONSISTE NA IMPOSIÇÃO (ATRAVÉS DE VIOLÊNCIA OU AMEAÇA) DE QUALQUER PRÁTICA SEXUAL (COM OU SEM PENETRAÇÃO) SEM CONSENTIMENTO DE UMA DAS PARTES. OU SEJA: ESTUPRO É SEXO SEM CONSENTIMENTO. CONSENTIU? POR LIVRE ESPONTÂNEA VONTADE, COM CONDIÇÕES PARA FAZÊ-LO? SEXO. NÃO CONSENTIU? OU CONSENTIU, MAS (POR QUALQUER RAZÃO) PEDIU PARA QUE O ATO FOSSE INTERROMPIDO E NÃO FOI? ESTUPRO. SEXO É CONSENSUAL. CONSENTIMENTO É O TERMO-CHAVE NESTA QUESTÃO.”
Arielle também afirma que o grande problema para enfrentar o alto número de estupros é que a maioria de nós tem dificuldade em aceitar que essa violência vai além da cena tradicional (com a vítima machucada, no chão, após ter sido agredida por um “monstro”). “A ideia de que existe um ‘grande monstro estuprador’ é muito mais confortável. Apesar de gerar extremo desconforto, o incômodo ainda parece ser menor do que aquele gerado pela ideia de que o tal ‘monstro’ pode ser o meu pai, namorado, marido, amigo… e de que aquela vítima — ou agressor (no caso dos homens) — poderia ser eu”, diz.
Ainda de acordo com a pesquisadora, homens que cometem o crime costumam lançar mão de uma série de justificativas. Por exemplo, dizer que uma violência realizada contra uma mulher inconsciente, ou sem condições de reagir, não foi estupro. Ou acreditar no chamado sexismo ambivalente, em que um comportamento feminino é idealizado (a mulher é um ser meigo, frágil e gentil), e quando ela foge a esse padrão pode ser punida.
Quantas vezes não dissemos ou ouvimos esse tipo de comentário?
“Olha só! O que os vizinhos vão dizer?” “Era uma frase comum na juventude. As palavras hoje em dia não devem ser as mesmas, mas a mensagem é igual: minha identidade é construída mais em função de como o outro me vê do que como eu realmente quero ser”, afirma a socióloga e feminista Enid Backes, hoje com 85 anos. Ela diz que a desqualificação cotidiana que ocorre em todas as esferas, privadas e públicas, ainda dificulta o empoderamento feminino. “Além disso, costumamos pensar o homem como o caçador e a mulher como a presa. “Quando o homem comete o estupro, é como se estivesse exercendo seu papel, e azar da vítima se estava no lugar e no momento propícios ao agressor”, afirma. Ainda hoje, o discurso de que as mulheres devem se dar o respeito e se cuidar é muito mais difundido do que o de que os homens devem respeitar as mulheres — TODAS elas, não só a “direita”, a “correta” e a “recatada”.
Nós, mulheres, também estamos sujeitas a essa cultura, afinal somos criadas no mesmo mundo. Nossa sociedade é sexista, por isso é comum reproduzirmos pensamentos e comportamentos machistas. Desde a infância, somos bombardeadas com comentários, programas de TV e produtos que naturalizam a violência contra a mulher, e muitas vezes incorporamos isso sem notar.
Acesse no site de origem: Cultura do estupro: como ela é muito mais presente no Brasil do que você imagina (Cosmopolitan, 26/07/2016)