(O Estado de S. Paulo, 07/06/2016) Uma mulher se casa com um diretor de cinema. Este, passado o rito do enlace, faz ameaças de morte e a obriga a se prostituir vendendo seus “serviços sexuais” a 5 homens simultaneamente. Indignada, tenta voltar para casa dos pais e é rejeitada – mesmo denunciando que o marido a espanca com frequência. Uma triste trama de ficção? Não. Essa foi uma experiência real de Linda Lovelace, a estrela do famigerado filme pornô Deep Throat. Despida de seu codinome e à revelia de seus agressores, Linda Susan Boreman tornou-se um ícone do ativismo contra os maus tratos às mulheres dentro da indústria de películas eróticas. Ainda assim, e 44 anos depois, a pregnância do imaginário popular prefere continuar a celebrar sua personagem sem que a violência atrapalhe o gozo.
Em território nacional, são cerca de 5 mil feminicídios por ano – sendo 40% destes cometidos por homens com grau de parentesco, amizade ou relacionamento amoroso com a vítima. Outros dados indicam que uma em cada três mulheres brasileiras já sofreu ou ainda sofre violência sexual. A Central de Atendimento à Mulher, acessível pelo número 180, recebe uma média de 8 denúncias de violência por hora. Quantas mulheres, neste exato momento, estão enfrentando algo semelhante ao que Linda Lovelace passou? E se pensar na parcela significativa de mulheres que não denunciam tal violência pelo medo da exposição, do descrédito, da condenação ou da morte? E o que fazer com a vergonha de apanhar de maridos, namorados, pais ou desconhecidos simplesmente por ser mulheres?
A primeira e mais urgente medida é reconhecer e expor este problema como social e político. Isso porque a complexidade de sentimentos de uma pessoa submetida às violências cria um invólucro-cárcere. É um conflito tão grande de identidade, de noções de valores e de uso de poder que o isolamento se revela como uma “verdade” necessária e esmagadora. Sozinhas as mulheres não compreendem o que acontece… Que dirá reagir a isso e fazê-lo de maneira a evitar a recorrência. Porém, ao nos percebermos várias, ganhamos corpos, mentes, diálogos, forças e lutas. Ganhamos vida e voz.
Para Pierre Bourdieu a luta subversiva passa pelo debate com as forças conservadoras, obrigando-as a assumir as trágicas estatísticas que envolvem a violência (física e simbólica) exercida sobre a mulher. Pontua que somente desse modo à humanidade encontrará os meios para solucionar tal problema social. O desafio, por conseguinte, seria mapear os locais em que esse modelo opressor se reproduz e descobrir, para cada caso, o que o “debate” de Bourdieu significa e como executá-lo. Avaliando a questão por nós levantada, vemos um campo de batalha em que os territórios mais estratégicos estão sob total dominação. Estado, Igreja, Escola, Família, Mercado de trabalho. Seguramente teremos de desafinar os conformes destas instituições para que qualquer debate seja posto.
Exemplo concreto da ação do Estado foi à extinção da Secretaria de Mulheres que tinha status de Ministério, pelo governo provisório de Michel Temer. Isso certamente porque, na hierarquia de Ministérios, o masculino domina o feminino. Daí que o Ministério da Fazenda, do Planejamento, entre outros, são, na visão do presidente em exercício, mais importantes que pautas sociais que buscam avançar na luta pelos direitos civis das mulheres.
Já no mercado de trabalho, por exemplo, quando uma mulher atinge cargos executivos ou de destaque é comum o comentário de que “ela deu para o cara certo”. Ou seja, em qualquer caso a mulher é sempre tutelada pelos homens: “Dilma se elegeu por causa do Lula”; “Marta até hoje usa o nome do marido, Suplicy”. É comum “analistas políticos” utilizarem como sinônimas as construções de frases como “fulano fez a seguinte declaração:”, enquanto “fulana reclama de…”. É o discurso dominante que coloca as mulheres em posição inferior ao homem na escala social, reproduzindo uma fala da “mulher nervosa, histérica, neurótica” cunhada no séc. XVIII, conforme Foucault elucida quando discute as biopolíticas, no livro Iº de História da Sexualidade.
Por tudo isso, que não é nada perto de tudo que ainda temos a dizer, é que o caso da adolescente violentada sexualmente por crime de estupro (e não uma “jovem nua e desacordada” do “suposto estupro coletivo”) não pode ser mais um episódio na batalha de audiência por share de mercado. É um caso real e não apenas um crime virtual para ter ser enviado, somente, à Delegacia de Crimes na Internet. Nem somente para eleger culpados e vítimas, fechando o caso rapidamente e passando para o próximo headline da mídia entorpecente. É hora de questionar e de exercer o primor da democracia: o diálogo. Por que este caso tomou a mídia? Como reagimos e o que significa essa reação perante a adolescente e às mulheres? Quais os trâmites legais de praxe e por que não foram seguidos? Para que servem as delegacias de mulheres? Para que existem Varas de Infância e Juventude? Para que existem mulheres Delegadas? Antes de qualquer pensamento reflexivo sobre tais questões, lembre-se de que submeter uma adolescente, já muito constrangida, ao interrogatório conduzido e na presença só de homens, é condenar por antecipação – e é também abuso (machista) de poder.
Vivemos um tempo narcísico, traduzido principalmente pela exagerada exposição da intimidade nas redes sociais. Mas tocar intimamente uma adolescente, totalmente vulnerável e inconsciente não tem nada da beleza que Narciso procurava no lago (aliás, onde a polícia procura sangue, na marca de uma virgem em um lençol branco?). Foi uma violência praticada por jovens que, legitimados pelo discurso dominante, exibem a adolescente como troféu nos “matadouros” Brasil afora. E logo aparecem os/as moralistas de plantão para desqualificar a vítima, afinal “as mulheres estão usando roupas muito curtas, justas e decotadas”. E essa, especificamente, “já tinha ligação com o tráfico”; “teve um filho aos 13 anos de idade”.
Até quando o corpo da mulher será território de discursividades reacionárias? Por que a mulher tem que ser “bela” dentro de um padrão estereotipado de beleza? Segundo a escritora e filósofa inglesa Mary Wollstonecraft, na infância somos levadas a crer que a beleza é o que pode haver de mais sublime na mulher. Ao longo do tempo nossa mente se adapta a esta ideia e também ao corpo como se fosse uma gaiola dourada que deve ser adorada. Prendem-nos e garantem que continuemos a fazer isso inconscientemente. Hoje algumas mulheres conseguem abrir a porta e bradar: o corpo da mulher não é da Igreja, do Estado ou de qualquer instituição que queira discipliná-lo. Ele é o templo de um “espírito livre”, como diria Nietzsche. E, como dizemos nós: o corpo é nosso!
Ainda sobre a erotização da mulher, buscávamos no Google por “delegadas mulheres no Brasil”. Dentre os nove resultados da primeira página, encontramos três que corroboram com o nosso tema “Lindas e poderosas, delegadas se destacam em ambiente masculino”, “Musas da lei” e “Conheça as belas delegadas que conquistam o respeito através da competência”. Bem, para não sermos óbvias, não escreveremos aqui sobre os resultados encontrados quando se faz a mesma busca, porém, trocando a palavra “delegada” por “delegado”. Basta fazer o experimento com quaisquer profissões mudando o gênero do vocábulo.
E como se os costumes da família tradicional brasileira não fossem abusivos o bastante, há diversos estudos e pesquisas mostrando que homens estuprariam mulheres se não houvesse consequências (!). Para corroborar com essas pesquisas não é preciso ir muito longe. Muitas vezes, em comentários expostos em nossas próprias redes sociais, é possível ler frases como: “Mas essas mulheres estão pedindo para serem estupradas”. Diante de manifestações como essas – e de tantas outras as quais podemos ter acesso-, será que é possível afirmar que estupro é realmente um crime cometido apenas por psicopatas? Não é esta nomenclatura somente mais um artifício da relativização que tanto nos escraviza e diminui nossas dores? Não é essa opressão, ainda que linguística, tão grave quanto à violência física?
Os jovens estupradores são culpados e devem ser punidos pelo crime que cometeram. Não pela “pena de morte” ou reduzindo a maioridade penal, como defendem alguns oportunistas que aproveitam tal debate para reforçar o punitivismo como solução. Devem ser punidos nas penas previstas no Código Penal, que inclusive passa muito longe da castração química – ideia que muitos reproduzem sem pensar que estupro não é sobre sexo, é sobre poder e machismo. Devem ser punidos pela nossa memória e pela nossa vigília ativa. E ao invés do rosto da vítima estampado em todos os tabloides que perpetuaram sua imagem com dois ou três termos pejorativos e evasivos, por que não deixamos que ela cicatrize suas feridas? Por que não gravamos os nomes, feições e posts de redes sociais deles para a sabatina?
A sociedade tem que aprofundar o debate a partir deste episódio. Seja em nossas interações pessoais ou virtuais. Diariamente, nas letras de música, nas propagandas veiculadas pela mídia, nos conteúdos de entretenimento adulto e até nas rodas de conversas com amigos é possível perceber a desumanização e a objetificação da mulher. Até quando riremos em complacência? Até quando toleraremos o intolerável? É hora de nos tirarmos da nota de rodapé e nos colocarmos no editorial. Façamos de nós a pauta principal até que não consigam mais ignorar. Gritemos. Busquemos aprender e ouvir. Levantemos e ocupemos como fizemos da Avenida Paulista à Praça Roosevelt. Cada vez mais unidas, atentas, dispostas.
Por todas nós e por cada uma de nós: “Que nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância.” (Simone de Beauvoir)
*Christiane Novas é Relações Públicas, pós-graduada em Marketing pela ESPM, cursa Mestrado em Interfaces Sociais da Comunicação (ECA-USP) e atua como Coordenadora de Comunicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).07
*Júlia Vianna é Jornalista, cursa Mestrado em Interfaces Sociais da Comunicação (ECA-USP) e atua como Planning Manager – além de gerenciar a equipe de marketing da agência ID Studio.
*Jacqueline Quaresemin, Historiadora, Mestre em Sociologia, Especialista em Opinião Pública, é professora na Pós da FESPSP e Diretora na OPINARE Pesquisa e Consultoria.
Acesse o PDF: Da nota de rodapé ao editorial, por Christiane Novas, Jacqueline Quaresemin, Júlia Vianna (O Estado de S. Paulo, 07/06/2016)