Dois anos após o início da CPI Violações dos Direitos Humanos nas Faculdades Paulistas, também conhecida como CPI do Trote, o tema voltou à tona. As principais motivações são a iminente colação de grau de Daniel Tarciso, único aluno suspenso após o fim das investigações, e o afastamento da doutora Maria Ivete Castro Boulos da direção do Núcleo de Direitos Humanos da FMUSP.
(Jornal do Campus, 29/11/2016 – acesse no site de origem)
A Comissão Parlamentar de Inquérito durou 83 dias, durante os quais foram executadas 37 audiências. O relatório final tem 194 páginas descrevendo as condições que permitem a violência de gênero nas faculdades paulistas, bem como medidas que podem ser tomadas para combatê-la — por exemplo, a criação de uma ouvidoria estudantil junto à Secretaria de Estado da Justiça e Defesa da Cidadania para atender aos casos de abuso e assédio sexual. O Jornal do Campus se propôs a investigar o que, de fato, mudou nesses dois anos.
As investigações resultaram em dez denúncias formais de estupro, das quais seis dizem respeito à Faculdade de Medicina da USP. Dos dez casos, três resultaram em sindicância. Desses alunos, um foi suspenso. Trata-se de Daniel Tarciso da Silva Cardoso, cuja suspensão de seis meses foi prolongada por mais um ano a pedido da Reitoria. A partir de setembro de 2016, a suspensão chegou ao fim (antes do processo judicial) e ele pôde concluir o curso de Medicina. O anúncio de sua iminente colação de grau reacendeu o debate acerca da impunidade dos agressores na Universidade e a preocupação com a segurança das alunas.
As mudanças
Com o início da CPI, diversos grupos se organizaram de forma autônoma para combater a violência de gênero na Universidade. Foi o caso da Rede Não Cala, grupo de professoras e pesquisadoras de diferentes institutos que surgiu em oposição à violência institucional e ao “pacto de silêncio” que existe na USP. O grupo defende que há um consenso entre alunos, funcionários e professores para omitir casos de violência sexual em prol da imagem da Universidade. O principal foco da Rede é dar às vítimas um suporte que elas não encontram na Instituição.
Em nota divulgada em outubro deste ano a respeito do caso de Daniel, o grupo criticou a forma como as autoridades uspianas têm se posicionado: “A omissão da Universidade tem sido justificada pelo receio de se cometer injustiça com os possíveis agressores. Questionamos por que a universidade não teme cometer injustiça com as possíveis vítimas. Do ponto de vista institucional, precisamos também indagar o que compromete mais o nome da Faculdade: revelar tais casos ou proteger quem cometeu uma agressão?”.
Em pesquisa conduzida online pelo Jornal do Campus com 77 mulheres de diversas unidades, apenas seis afirmaram se sentir seguras na USP. 40 disseram não saber a quem recorrer em caso de assédio ou agressão sexual. Das 37 restantes, 12 levariam o caso até coletivos feministas ou amigas. Cinco procurariam a direção da unidade, que é o processo de denúncia recomendado nessa situação. A descrença nos mecanismos institucionais parece prevalecer, mesmo após a CPI. O papel de acolhimento das vítimas é exercido por outros grupos autônomos, como os coletivos feministas.
Patrícia Souza, recém formada na FMUSP, afirma que o surgimento do Coletivo Geni foi incentivado pela falta de apoio institucional: “foi o modo como a cultura interna abraçava esses casos [de abuso sexual], culpabilizando a vítima, fazendo acusações como o consumo de álcool e o comportamento das mulheres envolvidas. Foi só quando começou a surgir um pouco mais de mobilização entre as mulheres que esse tipo de caso teve um pouco mais de repercussão”.
Órgãos da USP
A CPI também incentivou a criação de órgãos institucionais para lidar com os casos de assédio e abuso. Em parceria com a ONU, a Reitoria criou o USP Mulheres. O órgão é responsável pela criação de campanhas como o “Elas Sempre Podem”, que espalhou slogans de empoderamento feminino pelos campi através de outdoors, cartazes e postais. Não se trata de um núcleo responsável por lidar com as vítimas de abuso — nesses casos, o grupo está apto a orientá-las quanto ao processo formal de denúncia.
Nas unidades, alguns núcleos foram criados durante a CPI. É o caso do Núcleo de Direitos Humanos na FMUSP, por exemplo, que desde 2014 tem atuado para repelir casos não somente de estupro e violência de gênero, mas também de LGBTfobia e racismo. A Doutora Maria Ivete Boulos, até então responsável pelo núcleo, colaborou com o relatório final da investigação com a suspeita de 112 estupros na USP nos últimos 10 anos, fruto de um trabalho próprio. Trata-se de uma das poucas estatísticas disponíveis sobre o assunto.
No dia 14 de outubro de 2016, ela foi afastada de seu cargo por e-mail e substituída pelo professor Dario Birolini. Essa decisão foi questionada pelas alunas da unidade e por grupos como a Rede Não Cala, já que Boulos tem experiência no atendimento a vítimas de violência sexual, enquanto Birolini é especialista em cirurgia.
Quando questionada sobre um órgão central que preste assistência às vítimas de violência sexual, a Reitoria indicou a Comissão de Direitos Humanos, que também é responsável por supervisionar a apuração de todas as denúncias de agressões, trotes violentos e assédios na Universidade. Apesar das recomendações registradas após o fim da CPI, não existe um órgão encarregado exclusivamente de prestar atendimento às vítimas de estupro e assédio sexual. Além disso, o Regimento da USP ainda não contempla a violência de gênero e sexual, o que dificulta a ação de mecanismos em casos de estupros, sejam eles punitivos ou de proteção. O Jornal do Campus entrou em contato com a diretoria da FMUSP e com a Reitoria a respeito do caso de Daniel. Contudo, não obteve resposta da primeira e a segunda não se pronunciou sobre o caso em sua resposta.
O silêncio na Medicina
Agora que Daniel Tarciso da Silva Cardoso já conseguiu cumprir os créditos necessários para finalizar a sua graduação, a pressão das alunas da FMUSP se insurge contra a permissão para que ele possa colar grau — cerimônia que o autorizaria a pedir o registro médico necessário para o exercício da profissão. Enquanto o caso segue em análise jurídica pela USP, que está verificando “a obrigatoriedade de conceder a colação de grau ao aluno após ele ter cumprido integralmente a suspensão que lhe foi imposta”, como afirma a Diretoria da FMUSP em nota oficial, o novo debate chama a atenção não só para os crimes cometidos por Daniel, mas também para a continuidade do silêncio em torno do assunto, mesmo após a CPI.
A aluna de sexto ano Patrícia Souza realizou sua última prova da graduação também em outubro, e aguardava a cerimônia de colação de grau quando falou ao JC. Apesar de não ter contato direto com Daniel, ela conta que partilhava com ele a mesma moradia estudantil, local onde ocorreu um dos estupros que motivou a denúncia. “Depois da CPI, a Medicina teve um período de litígio seguido pelo silêncio após um certo desgaste. Então existe um debate interno em alguns núcleos, como o NDH [Núcleo de Direitos Humanos], que voltou a pautar esse ano a questão do Daniel e sobre como ele não poderia se formar, mas dentro da Faculdade a mobilização foi muito pequena, inclusive entre os alunos”, comenta ao falar também sobre a postura pouco ativa do próprio Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (CAOC) na promoção de discussões sobre o caso durante todos esses anos. “As alunas, por exemplo, não deveriam ser obrigadas a frequentar as mesmas aulas ou estar no mesmo ambiente de moradia, e isso não existe aqui”, afirma Patrícia.
Enquanto perante o Ministério Público Daniel Tarciso é réu pelo caso de estupro de uma estudante da Escola de Enfermagem (EE) da USP, ao longo desses anos ele já foi acusado de mais outros cinco estupros. Destes, três deles foram denunciados informalmente à Rede Não Cala, composta por professoras e pesquisadoras que visam ampliar o debate sobre violência sexual e de gênero na USP.
No dia 9 de novembro, um ato que reuniu alunas e coletivos feministas em frente à FMUSP adentrou os corredores da Faculdade ao som de palavras ordens como “se tem violência contra a mulher, não é a USP que a gente quer” e faixas pedindo por respostas. Muitos estudantes e funcionários cercaram o ato demonstrando curiosidade com a movimentação atípica dentro das dependências da Medicina. Luiza Ribeiro, que atualmente integra o Coletivo Feminista Geni e também marcou presença no ato, confirma o silenciamento apontado por Patrícia. “Agora as pessoas estão falando um pouco mais, mas ainda não publicamente. Na verdade, elas não querem saber disso. Ele [Daniel] tem um grupo muito forte aqui que é à favor dele e de sua formação, que acha que ele já cumpriu a pena necessária. Tem até colegas que acham que ele não estuprou, e tem gente que acha que a universidade não tem esse poder e que tem que esperar o julgamento. É claro que essas questões acontecem em esferas diferentes, mas não podemos deixar que ele se forme enquanto esperamos pela decisão judicial.”
O Regimento da USP ainda não contempla a violência de gênero e sexual, o que dificulta a ação de mecanismos em casos de estupros, sejam eles punitivos ou de proteção.
Logo após o ato, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) se reuniu e deliberou o indeferimento do registro profissional (CRM) do aluno até que seja concluída a avaliação jurídica do caso pelo departamento do próprio Conselho. De acordo com nota divulgada pelo Cremesp, “um cidadão que, durante a faculdade de Medicina, é formalmente acusado de estupro por colegas de graduação – se comprovada sua conduta –, não pode ter o direito de exercer esta sagrada profissão, ligada, diretamente, à vida e à dignidade.”
Denunciar é preciso, mas na USP é difícil
Apesar de não constituir um escritório formal da Universidade para lidar com essas denúncias, Heloisa Buarque de Almeida afirma que muitas delas chegam para as professoras da Rede Não Cala. “O problema é que a maior parte das mulheres não quer fazer a denúncia formal por não acreditar nas instâncias de apuração, e em parte elas têm razão”, explica. “Há um despreparo muito grande nas unidades para atender esse tipo de caso, e ele tem sido responsável por uma violência institucional contra as vítimas.”
Atualmente, em casos de ocorrências de estupro nas instâncias da Universidade, as vítimas devem encaminhar sua denúncia para o diretor da unidade do agressor, com cópia para a Ouvidoria da USP. Para Heloísa, além do procedimento não garantir a abertura de uma sindicância para a investigação, ele não oferece qualquer tipo de acolhimento para a parte denunciada. “Para nós da Rede, a universidade teria que abrir um lugar que primeiro ofereça o atendimento médico e psicológico — com protocolo pós-estupro, pílula do dia seguinte, anti-retroviral —, e que depois acompanhe o encaminhamento jurídico do processo”, diz.
Heloísa destaca que, apesar de casos de faculdades tradicionais como a FMUSP chamarem mais a atenção e possuírem uma tentativa mais sistemática em abafar os casos, a cultura do estupro também se faz presente em unidades como a FAU, ECA e FFLCH. “Normalmente são casos que acontecem em festas, onde todos bebem e usam psicoativos juntos, o que faz com que a menina se sinta responsável pelo que aconteceu e tenha ainda mais dificuldade em falar”. A professora conta sobre já ter ouvido denúncias de quatro alunas que foram estupradas pela mesma pessoa em momentos diferentes, mas não se viram em condições de formalizar a denúncia. “Acontece de começar consensual, o homem ficar violento no meio da transa e não parar, e elas se questionam ‘como é que eu vou denunciar um cara desses? A sindicância não vai me favorecer’, e elas têm razão.” O receio, no entanto, não é exclusividade da USP: de acordo com pesquisa divulgada pelo Ipea em 2014, somente 10% dos casos de violência sexual costumam ser denunciados no Brasil.
Sobre o caso de Daniel Tarciso, Heloísa diz acreditar que a violência contra a mulher não se limite ao ato do estupro em si, mas também como os casos são levados dentro da USP; “Quando a unidade abafa os casos ou faz uma sindicância que expõe a vítima colocando-a frente a frente com o seu agressor para fazer a acareação, como já aconteceu, ela comete uma violência institucional. O que mais mancha o nome da Universidade não é o ato, mas não ter a sindicância bem-feita, é não lidar com um caso corretamente.”