Especialistas em gênero são unânimes quando debatem os caminhos para combater a violência contra a mulher: é preciso investir em educação. Mas, por onde começar?
(HuffPost Brasil, 21/09/2016 – acesse no site de origem)
Aproveitando a retomada das aulas, a ONU Mulheres lançou no início de setembro, um Currículo de Gênero para discutir sobre educação de gênero dentro das salas de aula.
A iniciativa, realizada com a iniciativa O Valente não é Violento, convida profissionais da área de educação a repensar e transformar ideias pré-concebidas sobre o que é “ser homem” e o que é “ser mulher” através de seis planos de aula para professores e alunos do ensino médio. As aulas estão disponíveis para download gratuito e está acessível para todos os professores.
A ideia é incitar debates e discussões sobre como a educação é influenciada porpapéis de gênero e amarras sociais. O projeto foi financiado pelo União Europeia e revisado pela área de Projetos de Educação da UNESCO.
O currículo foi dividido em seis aulas: Sexo, gênero e poder; Violências e suas interfaces; Estereótipos de gênero e esportes; Estereótipos de gênero, raça/etnia e mídia; Estereótipos de gênero, carreiras e profissões: diferenças e desigualdades; e Vulnerabilidades e prevenção.
A iniciativa é um pequeno passo para o longo caminho para combater a cultura do estupro no Brasil, que todos os anos, corrobora para aumentar números já alarmantes sobre agressão contra mulheres. A cada 11 minutos, uma mulher é violentada no Brasil, totalizando cerca de 50 mil registros por ano. Porém, estimativas mostram que são registradas apenas 10% destas agressões, o que sugere que o País oculta até 500 mil estupros por ano.
Os principais motivos pelos quais vítimas não denunciam tais agressões são, na maioria dos casos, sentimento de culpa, medo de julgamento de pessoas próximas e de autoridades, e medo de represálias, uma vez que a maior parte ocorre dentro do círculo social, seja um parente ou alguém próximo da família.
Uma pesquisa do Datafolha mostrou que um em cada três brasileiros culpa a vítima de estupro. A pesquisa aponta que 30% dos brasileiros concordam com a afirmação de que “a mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada”. Revela também que 85% das mulheres têm medo de serem estupradas.
Os números mostram a dimensão do problema e não fogem da realidade brasileira, analisou a especialista em gênero da Plan International Brasil, Viviana Santiago. “Vi um cenário muito ruim, mas este é o Brasil. Esta é a mentalidade, e ela não é atual. É uma mentalidade misógina, machista, que é incorporada desde nossa primeira infância.”
Ela explica que a cultura do estupro é muito mais complexa e enraizada do que a maioria imagina e a educação que recebemos hoje é um dos pilares que sustentam o “machismo de cada dia”.
“Você achar que a mulher ‘pediu’ para ser estuprada porque estava usando roupas provocantes não é uma mentalidade abstrata. Ela foi incorporada na gente e tem a ver com os processos de socialização. Nós fomos educados e socializados para agirmos de acordo com nosso gênero. Quais os papéis e modelos de um homem e uma mulher nessa sociedade?”
Segundo a especialista, desde pequenos, os brasileiros veem como “natural” a “masculinidade predatória”. “Quando pedimos às mulheres saírem de casa cobertas, quando pedimos às mulheres para não beberem na balada ou para não se maquiarem, para não ‘chamarem muita atenção’, estamos colocando amarras porque o pressupomos que um homem não poderia se controlar quando visse o corpo dessas mulheres.”
Para Santiago, diversos fatores potencializam esta ideia, como a objetificação do corpo da mulher na TV e na propaganda de cerveja, e, também, no ambiente escolar, que proíbe as meninas de usarem saias e shorts. “Proibir meninas de usarem shorts nas escolas não tem a ver com regras, é sobre o incontrolável desejo dos meninos. Pressupõe que ele não vai se controlar ao ver pernas femininas. Ou seja, uma direção que reitera esse estereótipo.”
Além do ambiente, as instituições de educação também pecam em seus conteúdos. “Nas salas de aula, aprendemos que histórias são escritas apenas por homens. Mulheres não fazem história, cuidam da família, da reprodução da espécie”, acrescenta a especialista.
A pedagogia cultural também está intrínseca nos primeiros anos escolares, quando a professora pede aos pais (quando recados não são endereçados apenas às mães) que comprem kits lúdicos para meninos (brinquedos de carrinhos, lego, quebra-cabeça) e kits lúdicos para meninas (maquiagem, boneca, vassourinhas e kits de cozinha).
“Pensar em educação é pensar na perspectiva mais ampla. As pedagogias culturais educam tanto quanto o currículo de matérias. São essas pedagogias que ensinam que o corpo da mulher é para ser consumido. Propagandas educam, novelas educam, notícias educam.”
Quando se fala em educação de gênero e combate à violência contra a mulher, um ponto essencial para o debate é entender quem são os agressores. Para Santiago, existe uma linha tênue que separa a “encoxada” do metrô de um estuprador. “Assédio é a mesma coisa. O que leva esse homem a achar que o corpo da mulher está lá para satisfazê-lo?”
“Os homens que estupram são monstros, a gente afasta. Mas precisamos perceber que, pela quantidade de estupros e violência sexual, eles estão em todos os âmbitos da sociedade. Eles são nossos amigos, nossos parentes, nossos companheiros. Eles são nossos monstros. São as práticas sociais que produzem isso.”
Ela cita exatamente a cultura do estupro, a objetificação da mulher, do julgamento da sociedade para a vítima, que apenas fortalece o agressor e o “tabu” que persiste em torno do assunto. “Se a gente não muda esse modelo, a gente não muda a mentalidade.”
Luiza Belloni