Feminicídio: da invisibilidade à incompreensão. O papel do Ministério Público, por Valéria Diez Scarance Fernandes

06 de fevereiro, 2018

“O papel do Ministério Público, de cada uma e cada um, é transcender a lei fria e entender que se pode salvar vidas com atitudes simples, como solicitar medidas de proteção e encaminhar mulheres e filhas/filhos para a rede de atendimento. Se a vida se foi, lutar para que a Justiça seja feita, para que a memória seja respeitada e para que nunca uma história seja em vão ou minimizada por aqueles que não conhecem a dor do silêncio.”

Sumário: 1. Introdução: o efeito cadáver. 2. Por que uma lei de feminicídio? 3. A “assinatura” do feminicida. 4. Natureza da qualificadora: subjetiva ou objetiva? 5. Como vencer os desafios 6. Conclusão: Qual o papel do Ministério Público? Referências.

Palavras-chave: Feminicídio. Índices. Natureza da qualificadora. Efetividade.

1. Introdução: o efeito cadáver

Os índices de violência contra mulher causam abalos sísmicos mundo afora, mas não geram sequer tremores no Brasil, justamente o quinto país mais violento do mundo para as mulheres.

Apenas um exemplo: em outubro de 2016, Buenos Aires parou para protestar o feminicídio de uma jovem adolescente, e essa mobilização se alastrou pela Europa e parte da América Latina. No nosso Brasil, há mais comoção pelo aumento de passagem do ônibus do que pela violência.

Notícias e mais notícias de mulheres mortas trazem a falsa sensação de que o feminicídio só acontece lá, na televisão e em locais distantes, e de que as instituições – Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Segurança Pública- não têm responsabilidade sobre esses índices. Afinal, devem atuar em causas relevantes e mais importantes como crime organizado, ações civis públicas, improbidade administrativa, e não em processos nos quais as próprias vítimas desistem da proteção. Lamentavelmente, este ainda é o pensamento de parte das autoridades de ambos os sexos.

A resposta “formal” de que todas e todos merecem proteção não corresponde à atuação efetiva em todos os inquéritos e processos de feminicídio. Existe um vácuo entre o discurso de defesa da mulher e a prática processual.

Por que isso acontece?

Como pessoas inseridas na sociedade, as/os profissionais de todas as instituições não estão imunes a repetir conceitos machistas e sexistas. Não estão isentos de sofrer violência em suas vidas pessoais ou mesmo repetir inconscientemente esses padrões nas audiências, nos inquéritos e processos. Por isso, o conhecimento e a formação específica em gênero tornam-se fundamentais para uma atuação justa e efetiva.

(…)

3. A “assinatura” do feminicida

Os homens não praticam feminicídio por amor, mas porque consideram que a vítima, por ser mulher, não pode ter ou exercer os mesmos direitos de um homem. Durante o relacionamento, reforçam padrões já naturalizados da sociedade e estabelecem regras do casal que devem ser cumpridas: cuidar da família em primeiro lugar, não chegar tarde, priorizar a casa, etc..

Em regra, o agressor exerce controle sobre a mulher – suas ações, roupas, amigos, família como se estivesse cuidando da parceira e da família. Quando pratica violência, justifica seus ataques por fatores externos (álcool, drogas, desemprego) e culpa a vítima, dizendo que ela deu causa ao seu descontrole, não entende seu momento de dificuldade, imputando-lhe descumprimento de uma regra, de suas atividades de “esposa”. Essas são as hipóteses mais comuns para as brigas iniciais.

Logo depois do ataque, o agressor pede perdão e diz que perdeu o controle, “não queria fazer isso”, mas a vítima provocou essa situação. Como em regra é um “bom cidadão”, ou alguém que não destoa do restante da comunidade, a vítima passa a acreditar que o problema é com ela. São tantas alternâncias entre descontrole e amor que a vítima perde a referência e não sabe em que acreditar.

Com essa repetição, ocorre a chamada “Síndrome do Desamparo Aprendido”, em que a mulher tem a sensação de que não adianta reagir, pois a situação não se alterará. As principais consequências são: distorções ou dissociação da realidade, alteração da autoimagem, baixa autoestima, sentimento de culpa, minimização da violência e stress pós-traumático (LABRADOR, 2011).

Trata-se de uma reação orgânica gerada no cérebro pela repetição da dor, comprovada cientificamente por experimentos com animais que foram submetidos a choques elétricos. Assim, fica inerte durante o ataque e perde a noção do perigo.

O feminicida pratica um ato covarde, pois sabe que ataca uma presa acuada e que já não pode se defender.

Além desse aspecto, quanto ao modo de execução, há sinais tão marcantes do feminicídio que quase constituem uma “assinatura” do crime.

Mudam as vítimas, os réus e as cidades, mas os crimes em sua maioria são semelhantes. Por isso, são evitáveis. No modelo de Protocolo Latino Americano para Investigação de Mortes Violentas de Mulheres consta uma tabela com as principais circunstâncias da morte, reproduzida a seguir:

(…)

Acesse este artigo na íntegra em pdf

Valéria Diez Scarance Fernandes é promotora de Justiça de São Paulo, Coordenadora do Núcleo de Gênero. Foi Coordenadora Nacional da Copevid/CNPG/GNDH. Membro do GT6/CNMP. Mestra e Doutora em Processo Penal. Post Graduated in Victimology at Inter-University Centre Dubrovnik. Professora de Cursos de Pós-graduação. Autora de artigos jurídicos. Escreve para o Jornal Carta Forense. Publicou o livro: Lei Maria da Penha: o processo penal no caminho da efetividade, da Editora Atlas.

Acesse a publicação na íntegra em pdf: Tendências em Direitos Fundamentais: possibilidades de atuação do Ministério Público (CNMP, 2017)

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