(HuffPost Brasil, 03/08/2016) Em 2006, a Lei Maria da Penha estabeleceu que haveria destaque nos currículos escolares para os “conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher”, a fim de coibir tais agressões.
Oito anos depois, o Plano Nacional de Educação (PNE) excluiu conteúdos de gênero do conteúdo da sala de aula. A mesma lógica foi reproduzida nos planos estaduais e municipais. Para especialistas, enquanto o aspecto preventivo da legislação ficar à sombra do punitivo, as mulheres continuarão a serem mortas dentro de casa.
“É um procedimento extremamente contraditório querer abolir do sistema educacional a temática de gênero quando a violência está vinculada a uma hierarquia de gênero, a um desrespeito às mulheres. É muito contraditório o Estado dizer que se preocupa com a temática da violência contra as mulheres e excluir a discussão de gênero”, afirma a advogada Carmen Hein, coordenadora do relatório da CPMI da Violência contra a Mulher.
Na avaliação da ex-consultora da Secretaria de Política para Mulheres (SPM), essa exclusão é inconstitucional e ilegal. “É ilegal porque a Lei Maria da Penha prevê essa discussão e inconstitucional porque fere diretamente a possibilidade de discutir autonomia, dignidade, princípios constitucionais”, argumenta.
Quando o tema é abordado nas escolas, em geral não se discutem as relações de gênero, base para motivar a violência.
Com a resistência na educação formal, a sociedade civil tem se organizado para mudar essa mentalidade. Sob coordenação da professora de Filosofia de Direito Silvia Pimentel e ex-presidente do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) das Nações Unidas, a Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo elaborou diretrizes para um tratamento de equidade nas questões de gênero.
O documento prevê, por exemplo, “combater e evitar atitudes e comportamentos discriminatórios” por gênero, raça, cor, etnia, religião situação social, orientação sexual e identidade de gênero, além de promoção de debates sobre o tema. A Secretaria de Direitos Humanos (SDH) estuda a adoção dessas diretrizes em outras universidades dos sistema de ensino superior do Brasil.
“Nós temos uma tradição, uma mentalidade patriarcal e machista”, destaca Silvia Pimentel. Ela lembra ainda que a falta de representatividade na estrutura do Estado com o governo interino de Michel Temer é um entrave simbólico para mudanças pelas vias institucionais. “O poder tem que existir e tem que ser visível. Uma das formas da pauta da mulher estar bem visível é estar no primeiro ranking ministerial”, afirma.
A especialista lembra, contudo, que a questão não é tratada como prioridade tradicionalmente. No final do governo da presidente afastada, Dilma Rousseff, por exemplo, a Secretaria de Políticas para Mulheres perdeu o status de ministério.
Sem informação
Outra lacuna da execução da lei trata da falta de sistematização de dados, que inviabiliza um diagnóstico preciso da violência contra a mulher. O artigo 8º do texto prevê a “promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes às causas, às consequências e à frequência da violência doméstica e familiar contra a mulher”.
O mesmo artigo estabelece como diretriz o respeito nos meios de comunicação dos “valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica”, de acordo com o estabelecido nos artigos 1º, 3º e 221 da Constituição.
Rede de atendimento
São apontadas falhas ainda no acolhimento e atendimento às mulheres, mesmo na rede especializada, além de dificuldade em chegar a alguns desses estabelecimentos.
Em todo o País, são 502 delegacias de atendimento à mulher, segundo a Secretaria de Políticas para Mulheres. A rede de atendimento conta ainda com 95 promotorias especializadas, 238 centros de referência, 80 casas-abrigo e 596 serviços especializados de saúde.
Levantamento divulgado em 2015 no estudo “A institucionalização das políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres no Brasil”, do Ipea, revela que apenas 10% dos municípios brasileiros contavam com organismos de políticas para as mulheres. São 1,3% com casas-abrigo e 0,7% com serviços de saúde especializados.
Uma opção para aumentar a capilaridade é a realização de consórcios. A modalidade, contudo, não é comum no enfrentamento à violência contra a mulher. Atualmente, apenas três casas-abrigo na região metropolitana de Belo Horizonte e no ABC paulista funcionam desta maneira, de acordo com a ONU Mulheres.
Para a consultora da ONU Mulheres no Brasil, Wânia Pasinato, um dos desafios atuais é chegar até cidades do interior. “A violência está sendo interiorizada e os serviços de atendimento estão muito mais nas capitais. Então há uma relação entre ter a presença do serviço e contribuir para a redução da violência.”
Ela lembra que a falta de informações precisas dificulta a tomada de decisão sobre onde alocar novas unidades de atendimento. Outro ponto destacado pela consultora é a baixa institucionalidade das políticas públicas, ou seja, a falta de comprometimento dos governos locais e de continuidade das ações com as trocas de mandatos políticos.
Apesar de enxergar os desafios em aprimorar os mecanismos de enfrentamento à violência contra a mulher, Silvia Pimentel comemora o avanço em iniciar a desmitificação do assunto.
“Foi muito feliz que a lei tenha sido apelidada de Maria da Penha porque deu uma concretude muito grande. Não é a lei 11 mil e tal que ninguém guarda na cabeça. Isso eu acho que contribuiu demais para o imaginário popular em termos de reconhecimento contra violência doméstica.”
Acesse no site de origem: A Lei Maria da Penha que não saiu do papel: Falta discussão de gênero nas escolas e muito mais, por Marcella Fernandes (HuffPost Brasil, 03/08/2016)