Tem sido crescente e incontida a escalada disso que se chama feminicídio: um homem matar uma mullher, que dizia ou pensava “ser sua”, quase sempre.
(Justificando, 22/08/2017 – acesse no site de origem)
Circula notícia que, nos últimos dois dias, três mulheres foram mortas pelos “seus homens”, em São Paulo. Quase uma por dia. Uma por aí, outra no Jardim Ângela, outra em Perdizes. A dor não tem endereço, portanto, e agora, mais do que nunca, sai no jornal, na rede, no face, no whats.
Há quem diga que sempre foi assim, e o que mudou foi a divulgação. E nessa estatística cruel vamos computar a dor em silêncio, não anunciada, não revelada, que existe por esse Brasil afora. E esse triste índice, certamente, será bem maior. Temos lei que agora prevê pena maior para quem mata uma mulher, porque ela é mulher, por “razões do sexo feminino” (artigo 121, parágrafo 2o, do Código Penal).
Mas parece que lei apenas não resolve. Temos que ir além desse parâmetro legal, que pode amedrontar, mas talvez não estanque, de pronto, a sangria, os tiros, os tapas, os esganamentos, os gritos, e a dor.
Maria foi estrangulada porque José pensava estar sendo traído. Rosa foi esfaqueada (quase despedaçada), com o filho por perto como testemunha, porque se separara de Antonio Cravo, já que o amor tinha se acabado. Joana vinha sofrendo muito com João, aguentando tudo, até o dia em que partiu, com um tiro inesperado, durante um sono (sonhava Joana?), e foi acompanhada por um corpo inerte de um João suicida e certamente infeliz.
Vozes tantas se somam e se dividem, após tragédias, e querem respostas, porquês, punição. Uns dizem que Maria bem mereceu, afinal, traição acaba assim mesmo, em morte… Outros dizem que o Cravo nem brigava tanto com a Rosa e que era bom marido, trabalhador, nem parecia violento… João andava atordoado, mas era bom pai… E se matou em seguida, “coitado”, então “não foi” feminicídio…
E vamos, assim, em tempos ditos líquidos e porosos, absorvendo histórias de outros, alguns perto de nós, outros distantes. Ficamos algo indignados, algo assustados para depois, esquecermos.
Mas não se pode esquecer, nem buscar frágeis justificativas!
Mulheres mortas por homens que um dia disseram amá-las é feminicídio, é revelação de tempos de doença emocional grave e contaminante.
A banalização da vida da mulher, morta por ser mulher e estar diante de um homem quase sempre conhecido (até amado?) revela muito. Revela, tristemente, filhos marcados por uma dor singular, revela quase sempre um homem “fraco” (ainda que violento!) e doente emocionalmente, que poderá continuar em sua sanha de “ser homem” na força, no seu medo machista e impotente, no seu jogo de e pelo poder (também equivocado, quase sempre). E revela também mulheres que, muitas vezes, em nome do amor, ou de serem amada, suportam, suportam, suportam, para ver se tudo muda, cura ou melhora. Até cansaram de sofrer, ou até morrerem…
O combate a esse mal introjetado em todos nós pelo patriarcado, que fez homens crerem ter poder sobre o corpo e vida da mulher e mulheres crerem ter que suportar relacionamentos infelizes e abusivos, passa pela discussão de nossos papéis na vida familiar e social, exige reflexão e coragem para seguirmos, sós ou em companhia de outrem, mas sempre em caminho de construção, respeito e afeto.
Feminicídio, essa palavra que para alguns pode significar “exagero” (ora, nem tudo é feminicídio… dizem!) exige que lutemos, todos, homens e mulheres, para que a dor saia de pauta, que a violência não seja algo tão banal, e que estejamos todos, bem alertas, bem atentos, como bem lembra o poeta:
“Por isso, preste atenção nos sinais. Não deixe que as loucuras do dia-a-dia o deixem
cego para a melhor coisa da vida: o AMOR!(1).”
Dora Martins é juíza da Vara de Infância.