De outubro do ano passado para cá, o movimento Me Too ganhou notoriedade e tem provocado verdadeira revolução entre mulheres que — formal ou informalmente — se identificam ou são identificadas como feministas. A corrente tomou corpo nas redes sociais depois das acusações de abuso sexual contra o produtor de cinema Harvey Weinstein. Mobilizou um sem-número de mulheres e de homens ao redor do mundo numa onda de debates sobre a violência sexual no ambiente profissional e atingiu o seu momento de maior visibilidade no início de Janeiro deste ano — durante a cerimônia de premiação do Golden Globes — quando as atrizes de Hollywood se vestiram de preto em apoio ao Time’sUp: um grupo norte-americano de suporte às vítimas de assédio e abuso sexual dentro e fora da cidade cinematográfica.
(O Estado de S. Paulo, 30/01/2018 – acesse no site de origem)
Mas as opiniões sobre o Me Too não são unanimes. Desde dezembro do ano passado, logo após terem sido as suas protagonistas eleitas personalidades do ano pela revista Time Magazine, uma série de reações foi registrada contra o movimento; tanto pela imprensa quanto pelas redes sociais.
Em janeiro deste ano, a imprensa tradicional registrou três interessantes reações contra o movimento. Dentre elas, o artigo da escritora Margaret Atwood para o periódico The Globe and Mail; o protesto abaixo-assinado das artistas e intelectuais francesas em defesa da liberdade de importunar dos homens — encabeçada pela crítica de arte Catherine Millet e a atriz Catherine Deneuve— e, por último, o comentário da escritora feminista Germaine Greer ao jornal australiano Sydney Herald, pedindo para que as mulheres aprendessem a reagir “na chincha” contra as agressões e aos indesejados avanços masculinos.
Apesar de se utilizarem de argumentos distintos, essas mulheres evocam o ideal de agência e autonomia feminina; a exigir obediência ao princípio do devido processo legal em relação aos casos de assédio sexual. Elas expressam, com certa razão, o receio de que, apesar de chamar atenção de um grande público, iniciativas como o Me Too saiam de controle e se transformem numa verdadeira caça às bruxas; assim ameaçando a estabilidade das instituições políticas e jurídicas responsáveis por assegurar a universalidade dos direitos fundamentais. O que, por consequência, enfraqueceria as demandas por igualdade e o respeito geral às liberdades individuais.
No seu artigo para o The Globe and Mail, Margaret Atwood questiona se as ditas “boas feministas” seriam capazes de manter o equilíbrio e a imparcialidade durante a apreciação e o julgamento de casos de assédio sexual. Atwood, foi bastante criticada pelas feministas por ter assinado uma carta em defesa do professor Steven Galloway (UBC, Canada), acusado de estupro por uma ex-aluna; diz o seguinte: a ausência de fair-mindness entre as boas feministas estaria alimentando a narrativa ancestral de que as mulheres seriam incapazes de razoabilidade. O que, segundo a escritora, daria motivos de sobra aos antifeministas de continuar negando a participação das mulheres nos processos decisórios em suas respectivas sociedades.
Para Atwood:
O #MeToo é um sintoma de um sistema jurídico falido. Frequentemente as queixas de abuso sexual não recebem um exame institucional justo, então as mulheres passaram a se utilizar de uma nova ferramenta [para obter justiça]: a internet. . . até agora o movimento mostrou-se bastante eficiente e foi reconhecido como um grito de alerta. Mas, quais serão os seus próximos passos? . . . Se o sistema legal for contornado por conta da sua ineficiência, o que tomará o seu lugar? Quem serão os novos mediadores do poder?
O texto de Margaret Atwood firma-se em relação a dois problemas bastante significativos. O primeiro deles, diz respeito a questão institucional e a carência de propostas razoáveis de grupos liberais (isto é, progressistas no sentido americano) para operar mudanças efetivas e garantir o acesso universal à justiça em casos de assédio e abuso sexual. O segundo, como mencionei antes, diz respeito ao problema da agência e da autonomia femininas.
Aos interessados no primeiro aspecto, indico a leitura de Moral Clarity (2008), da filósofa norte-americana Susan Neiman. Neste livro, Neiman relaciona o descredito de movimentos liberais à falta de diversidade de referências intelectuais por parte das suas lideranças. Já no Brasil, visualizamos essa crise no uso e abuso de ideologias marxistas pelos movimentos sociais. Como se vivêssemos em um mundo carente de complexidade, onde todos nós sentíssemos e racionalizássemos sobre as vicissitudes da vida seguindo uma mesma cartilha.
Por isso, em seu livro, Susan Neiman propõe um retorno ao pensamento do século XVIII e às ferramentas para resolução de dilemas políticos e morais que herdamos do Iluminismo. Segundo a filósofa, a rejeição do Iluminismo — tanto por setores liberais como por setores conservadores da sociedade — resultaria em alternativas ideológicas que colocariam em risco a nossa experiência da modernidade. Assim, ela nos adverte de que “a defesa do Iluminismo é a defesa do mundo moderno e das suas possibilidades de transformação e autocrítica.”
Para Neiman, além dos nossos ideais de tolerância e equidade, o Iluminismo também teria criado as condições necessárias para abrigar as nossas incansáveis demandas por felicidade, racionalidade, respeito e esperança. Demandas que, para o historiador britânico Jonathan Israel, estariam relacionadas ao início de uma subversão de mitos sobre a mulher na sociedade ocidental. No primeiro volume de uma série de livros sobre a filosofia do período, Israel explica como a discussão sobre o naturalismo filosófico e a obra de Spinoza revolucionaram o modo de homens e mulheres do século XVIII passarem a lidar com questões relativas à sexualidade e ao lugar da mulher na sociedade.
A partir de então, passamos a questionar o mito de que — em virtude da sua constituição natural ou de uma sexualidade, cujas fronteiras seriam difíceis de determinar — a mulher precisaria de ser vigiada, disciplinada e protegida; não apenas do mundo e dos homens, mas de si própria. Narrativas tais como o nascimento de Pandora pelo poeta grego Hesíodo e a carta do apóstolo Paulo aos Colossenses expõem, com clareza, a posição de muitos dos antigos em relação à autonomia feminina. Para eles, a mulher não seria capaz de autodeterminação devendo, por isso mesmo, submeter-se a custódia masculina.
Entretanto, segundo Israel, durante as primeiras décadas do século XVIII, autores como Paolo Mattia Doria (1667-1746) teriam concluído que:
as mulheres são igualmente vocacionadas ao empreendimento intelectual como homens, igualmente propensas ao vício e à virtude, e com a necessidade de que a mente e o corpo sejam mantidos em um equilíbrio saudável e harmonioso.
Aqui entramos na discussão do segundo aspecto suscitado pelo artigo de Margaret Atwood e constatamos que, os questionamentos da escritora não são dissonantes dos protestos formulados por Germaine Greer, Catherine Deneuve e Catherine Millet. Em seu manifesto publicado pelo jornal francês Le Monde, Millet escreve
Essa febre para mandar os “porcos” ao matadouro, longe de ajudar as mulheres a conquistar a sua autonomia, serve na verdade, aos interesses dos inimigos da liberdade sexual, dos extremistas religiosos, dos piores reacionários e daqueles que acreditam, em nome de uma concepção substancial do bem e da moral vitoriana que os envolve, que as mulheres são seres ‘à parte’, crianças com rosto de adultos, que pedem para ser protegidas.[1]
Apesar de toda polêmica contra o manifesto, em momento algum Millet faz pouco do sofrimento e da exigência por justiça das vítimas de assédio e abuso sexual. Pelo contrário, o argumento que ela apresenta é o de que a vivência da nossa autonomia impõe assumir responsabilidade pessoal pelas situações de risco das quais nós aceitamos participar.
Famosa no Brasil pelo livro de memórias sobre as suas aventuras sexuais, Catherine Millet (69) — assim como Margaret Atwood (78), Germaine Greer (78) e Catherine Deneuve (74) — faz parte de uma geração de mulheres cujo engajamento feminista foi enormemente marcado pela revolução sexual das décadas de 1960 e 1970 do século passado. Elas reconhecem que, se não fosse pela liberdade de gerar incômodo — tanto de homens como de mulheres — nenhum de nós teria embarcado em aventuras e relacionamentos cujas lembranças nos serve de compasso moral.
Desde a minha adolescência, compreendo que qualquer vivência da nossa sexualidade nos expõe a situações de risco. Já fui incomodada por homens e mulheres: cedi ou dei consentimento apenas ao incômodo que me pareceu mais aprazível. Também já sofri assédio e me senti constrangida. Em alguns casos, deixei passar em branco; em outros, reagi à agressão.
Aos 14 anos, fui assediada por um policial militar durante uma viagem de ônibus entre Recife e Olinda. Acredito que esses tenham sido um dos cinco minutos mais constrangedores da minha vida. Desci do ônibus atarantada, sem saber exatamente o porquê de um homem adulto — um policial — se achar no direito de interferir na minha vida!
Fiquei com aquilo na cabeça durante algum tempo, mas logo deixei para lá. O acontecimento, apesar de constrangedor, não deixou marcas. Outra menina poderia ter descido do ônibus aos prantos, prestado queixa na polícia, telefonado para os pais, acionado a imprensa. Ora, nenhum de nós tem a obrigação de reagir de maneira igual às situações semelhantes.
Reservo a mim, e a mais ninguém, o direito de ponderar sobre as minhas reações e aceitar os riscos intrínsecos às minhas opções, estejam elas vinculadas ou não à experiência do meu corpo e da minha sexualidade, e dessa forma exerço minha autonomia. Assim, embora ache justa a causa de movimentos como o Me Too, reconheço que, no fim das contas, somos todos humanos em nossas virtudes e em nossos vícios, e que em relacionamentos sexuais entre um homem e uma mulher, ou parceiros afetivos, um não será para o outro tão íntegro e perfeito quanto a estátua dada à vida por Vênus ao seu idealizador: Pigmaleão.
Juliana de Albuquerque é doutoranda em literatura e filosofia alemã pela University College Cork, Irlanda.