“Mulher negra, cria da Maré e defensora dos Direitos Humanos.” A vereadora Marielle Franco, assassinada na noite de quarta-feira no Rio, aos 38 anos, se descrevia desta maneira nas redes sociais, pontuando em primeiro lugar sua cor e gênero; sua origem, nascida e criada no conjunto de favelas do Complexo da Maré, na zona norte do Rio; e a missão que escolheu seguir na política.
(BBC Brasil, 15/03/2018 – acesse no site de origem)
Um evento traumático da juventude contribuiu para definir a trajetória profissional de Marielle. Quando estava no pré-vestibular comunitário da Maré, uma amiga que tinha acabado de ser aprovada na universidade foi morta por uma bala perdida, em tiroteio entre policiais e traficantes na comunidade.
A morte fez com que a jovem se envolvesse na militância por direitos humanos, no pré-vestibular comunitário que ajudou a “despertar sua consciência para o mundo”, lembra o amigo e correligionário Tarcísio Motta, vereador do PSOL e vizinho do gabinete ocupado por Marielle na Câmara dos Vereadores do Rio.
“Ela se lançou candidata em 2016 motivada pela necessidade de que as mulheres estejam na política, pela necessidade de combater o racismo, para mostrar que uma mulher negra e favelada pode e deve ocupar os espaços de poder”, diz Motta.
“Isso motivou uma belíssima campanha, que cativou tanta gente e foi a grande surpresa das eleições de 2016”, lembra o vereador.
Candidata de primeira viagem, Marielle foi a quinta vereadora mais votada no Rio, com mais de 46 mil votos. “A gente tem que entrar, sair, fazer política, resistir, dar a cara, e isso é uma das coisas que me orgulha”, afirmou.
Assassinato
Marielle cumpria o primeiro mandato como vereadora pelo partido há pouco mais de um ano.
Ela foi assassinada na noite de quarta-feira no Rio com tiros na cabeça, dentro do seu carro, no bairro do Estácio, perto da prefeitura do Rio.
Homens em outro veículo atiraram pelo menos nove vezes contra o carro da vereadora, matando também o motorista, Anderson Pedro Gomes. Uma assessora ficou levemente ferida.
A polícia apura a autoria e a motivação do crime, no qual há suspeita de execução.
O Rio está sob intervenção federal, em uma tentativa de conter a escalada de violência o Estado. O interventor, general Braga Netto, disse em nota que “repudia ações criminosas como a que culminou com a morte da vereadora” e do motorista, “se solidariza com as famílias” e “acompanha o caso em contato permanente com o Secretário de Estado de Segurança”.
Há duas semanas, Marielle assumira o posto de relatora de uma comissão criada para monitorar as ações da intervenção federal no Rio.
Em nota condenando o assassinato, o PSOL pede investigação do caso: “Exigimos apuração imediata e rigorosa desse crime hediondo. Não nos calaremos!”
‘Cria da Maré’
Marielle nasceu e cresceu no Complexo da Maré, e saiu do curso de pré-vestibular comunitário para a graduação em ciências sociais na PUC-Rio, universidade particular onde ela e outra colega eram as únicas mulheres negras do departamento. Para fazer o curso, teve 100% de bolsa.
Aos 19 anos, se tornou mãe de uma menina, Luyara. “Isso me ajudou a me constituir como lutadora pelos direitos das mulheres e debater esse tema nas favelas”, descreveu na biografia de seu site. Nos últimos tempo, morava na Tijuca, com a filha e a companheira.
Mais tarde, completou o mestrado em administração pública na Universidade Federal Fluminense (UFF), defendendo a dissertação com o título “UPP: a redução da favela a três letras”.
“Ela sempre foi uma pessoa muito forte, entendendo seu papel de lutar pela galera da favela, entendendo que a favela faz parte da cidade e que a gente precisava criar uma outra narrativa entre a favela e a cidade, e garantir os direitos dos moradores”, diz a pedagoga Shyrlei Rosendo, coordenadora do setor de mobilização do eixo de segurança publica da ONG Redes da Maré.
Shyrlei conhecia Marielle desde que ela era uma jovem universitária e trabalhava como secretária do pré-vestibular do Centro de Ações Solidárias da Maré (CEASM).
“Ela era uma pessoa muito forte. Uma figura que não levava recado para casa. Isso era muito marcante. Sempre muito firme nos seus objetivos, sabendo o que queria, mas também sabendo escutar as pessoas e dialogar.”
Hoje, ela diz que a comunidade está triste e atordoada. Para além dos elogios à atuação da vereadora, Shyrlei ressalta o significado político de sua morte “diante da conjuntura de retrocesso de direitos que estamos vivendo”.
“A cidade tem que se perguntar o que a morte da Marielle significa”, afirma.
“Mexer com direitos humanos é uma agenda muito delicada. A Marielle sabia onde ela estava entrando. Mas não imaginava que iria morrer por isso. Ninguém imagina.”
Do pré-vestibular comunitário, Marielle foi trabalhar na Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), coordenada pelo deputado federal Marcelo Freixo – que teve papel decisivo em sua carreira.
Na quarta-feira, Marcelo Freixo foi à cena do crime e se emocionou. “Ela era cria nossa”, disse. “Eu conheci a Marielle muito jovem, trabalhou dez anos na minha equipe. Era uma figura extraordinária. Isso é inadmissível. É um absurdo”, afirmou, considerando haver sinais de execução no assassinato.
‘Eu sou porque nós somos’
A notícia do assassinato levou à revolta e à comoção no Rio, com manifestações convocadas para esta quinta-feira no Centro, assim como para cidades como São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Brasília. O lema é #MariellePresente.
“Guerreira”, “companheira”, “radiante”, “corajosa”, “cheia de vida”, “cheia de gás”, são alguns dos muitos atributos sendo destacados em homenagens e desabafos comovidos feitos nas redes sociais por amigos, políticos, artistas, jovens de favelas, periferias e de movimentos sociais que tiveram inspiração na trajetória da vereadora.
Tarcísio Motta lembra que Marielle repetia sempre um lema do ubuntu, uma filosofia humanista africana: “Eu sou porque nós somos”.
Marielle questionava a falta de representação feminina na vida política. Ao discursar no plenário da Câmara dos Vereadores no mesmo dia, ressaltou a contradição de haver ali apenas cerca de 10% de mulheres, enquanto o gênero “é a maioria nas ruas”.
“Sendo a maioria, somos a força exigindo a dignidade e o respeito das identidades. Infelizmente, o que está colocado (no cenário político) nos vitima ainda mais.”
‘Precursora’
A atuação de Marielle na Câmara dos Vereadores foi marcada pela defesa de projetos para compilar dados sobre violência de gênero no Rio e para proteger os direitos reprodutivos das mulheres. A vereadora era uma voz constante de defesa a moradores de favelas.
Na semana antes de morrer, Marielle compartilhou denúncias de que policiais do 41º Batalhão da Polícia Militar, no Irajá, teriam agido com truculência na comunidade de Acari, “aterrorizando e violentando moradores”.
Ela disse que “o que está acontecendo agora em Acari” acontece desde sempre, e que “o 41° batalhão da PM é conhecido como batalhão da morte”.
“CHEGA de esculachar a população! CHEGA de matarem nossos jovens!”, escreveu. “Acontece desde sempre e com a intervenção ficou ainda pior.”
A denúncia havia sido compartilhada pelo Coletivo Papo Reto, do Complexo do Alemão. Integrante do coletivo, o ativista Raull Santiago diz que redes de comunicações das favelas têm sido um importante canal para dar visibilidade a denúncias de violações de direitos nas favelas.
“Marielle é uma guerreira, uma inspiração. É mulher negra, da favela, ativista de direitos humanos que chegou a poder público. Isso significa muito para muitas pessoas da minha geração. Para vermos onde podemos chegar e as mudanças que isso pode construir positivamente para nossa realidade.”
Para Shyrlei Rosende, esse era outro traço marcante de Marielle – e um legado fundamental que ela deixa.
“Ela é uma pessoa de passagem. No sentido de abrir caminhos e de ser uma inspiração para todo mundo – em especial para a juventude negra das favelas, que se sente mobilizada a ocupar os espaços que ela conseguiu ocupar.”
Um dia antes de morrer, Marielle protestou no Twitter contra a morte de mais um jovem no Rio. “Mais um homicídio de um jovem que pode estar entrando para a conta da PM. Matheus Melo estava saindo da igreja.”
“Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”, questionou.
Júlia Dias Carneiro