Movimento iniciado por paquistanesa já reúne milhares de relatos e incomoda islã
(Folha de S.Paulo, 20/02/2018 – acesse no site de origem)
Mulheres muçulmanas romperam neste mês um persistente tabu ao denunciar em escala inédita o abuso sexual que sofreram durante a peregrinação a Meca, a cidade mais sagrada do islã.
O movimento começou com o relato de uma jovem paquistanesa. Ela contou em uma rede social que sentiu uma mão agarrá-la pela cintura enquanto circulava a Caaba, o cubo negro no centro de Meca na direção do qual muçulmanos rezam.
“Achei que fosse um erro inocente”, escreveu. Então percebeu algo pressionado contra suas nádegas, um toque e um beliscão. Petrificada, deixou o recinto sagrado. Nunca mais retornou.
A história estimulou milhares de outras muçulmanas que guardavam segredo sobre experiências parecidas a compartilhar seus casos.
“Enquanto eu circundava a Caaba, senti uma mão na minha bunda”, diz a egípcia Alaa Fowlia, 21, à época adolescente. “Sei que o assédio existe em todos os lugares do mundo, mas não esperava isso durante esse ritual.”
Inspirada pelos relatos, a ativista egípcia Mona Eltahawy, 50, escreveu sobre suas próprias experiências e criou o movimento #MosqueMeToo, coletando outras denúncias. O nome parte do protesto feminista #MeToo (eu também, em inglês) e adiciona a ele a palavra mesquita.
“Foi emocionante ver outras mulheres muçulmanas falarem sobre algo tão tabu”, escreveu Eltahawy em artigo para o “Washington Post”. Aos 15 anos, durante a peregrinação dela a Meca, um policial apalpou seus seios. “Algo dentro de mim quebrou, e demorei anos para reconhecer isso. Foi só quando cresci que aprendi a chutar, estapear e cuspir no abusador.”
INCÔMODO
Histórias como a de Eltahawy e de outras tantas mulheres que se expuseram na internet incomodam dentro da comunidade. Meca é o cenário das histórias de piedade vividas pelo profeta Maomé no século 7, segundo a fé islâmica, cenas que seguem até hoje no centro dessa religião.
A peregrinação à cidade é uma das cinco obrigações de todo muçulmano, como a reza cinco vezes ao dia e o jejum durante o mês do ramadã.
Eltahawy foi criticada por colegas de fé. “Preferiam que me calasse para que os muçulmanos não ficassem com uma imagem ruim”, escreveu. Em meio aos ataques verbais sofridos por quem compartilhou as histórias, diversas outras mulheres optaram por não revelar seus nomes. A paquistanesa que inaugurou o movimento fechou sua conta no Facebook.
Khadija, 52, contou a história utilizando apenas o primeiro nome. Foi em 2010. Ela entrou em um táxi e, minutos depois, o motorista apertou suas coxas com a mão.
A mulher deixou então o veículo e entrou em outro. O segundo taxista lhe disse ter uma surpresa: mostrou-lhe o pênis. “Não falei nada. Saí do carro e comecei a caminhar sem olhar para trás. Meu coração batia forte e, por um tempo, eu não consegui falar sobre aquilo.”
Até que Khadija leu os relatos de outras muçulmanas —e também as críticas às vítimas. “Pediam que não contássemos o que aconteceu porque mancharíamos a imagem de um lugar sagrado como Meca”, diz. “Isso me irritou, e decidi escrever sobre aquilo que eu vi.”
Diogo Bercito