O feminicídio de Campinas e a responsabilidade da imprensa, por Luciana Boiteux e Luís Fernando Tófoli

10 de janeiro, 2017

A boa prática recomendada nesses casos é divulgar o fato de forma limitada e dar o principal enfoque às vítimas e à comunidade envolvida, assim como citar medidas preventivas, sem causar sensacionalismo

(Nexo, 10/01/2017 – acesse no site de origem)
Leia também: Dossiê Feminicídio: Qual é o papel da imprensa?

O “feminicídio* de Campinas” causou uma grande comoção pública. É importante entender a importância de usar essa denominação específica para esse crime praticado por um homem contra sua ex-esposa, outras oito mulheres e dois homens da família, além do filho de ambos, que se suicidou em seguida.

O perpetrador deixou mensagens nas quais ele tenta explicar o motivo para tal ato extremo. Mesmo sem entrar no teor dessas cartas, cuja divulgação pública se questiona, verifica-se a motivação do agressor, que tinha histórico de violência doméstica contra sua ex-mulher registrado na polícia. A separação do casal, há cinco anos, foi turbulenta, tendo havido disputa judicial pela guarda do menino que culminou com a (acertada) decisão de guarda materna com visitação paterna monitorada, por suspeita de abuso sexual dele contra o filho.

Além de premeditado, o crime foi um ato misógino: o alvo do agressor era as mulheres da família, não só Isamara. Em trecho divulgado, o assassino expressou seu ódio às mulheres (que chamou de “vadias”). Nos registros feitos na polícia a vítima relatou ameaças que incluíram sua mãe.

A violência do feminicídio é estrutural na sociedade brasileira. Ela não se dissipa e muito menos se justifica apenas por fatores individuais ou psicopatológicos dos assassinos. O motor do ódio que o causa é acima de tudo a manutenção da dominação masculina ou a frustração que ocorre quando essa dominação é impedida de acontecer.

Apesar disso, no entanto, os meios de comunicação que primeiro noticiaram o crime o classificaram como uma “Chacina” ou “Massacre”, sem mencionar violência de gênero ou feminicídio, e optaram por divulgar detalhes das mensagens deixadas pelo assassino, por considerar que haveria interesse público. Nas mensagens, ele tentou se colocar como um homem “de bem”, vítima de um “sistema feminista”, e acusou sua ex de alienação parental, se referindo à Lei “Vadia” da Penha, em meio à repetição de clichês e discursos conservadores e de ódio, como se lê todos os dias nas redes sociais.

PRECISAMOS MENOS DE SENSACIONALISMO E MAIS RESPONSABILIDADE

A reação do público a esses fatos divulgados foi imediata, muitos lamentaram as mortes, mas ao mesmo tempo diversos indivíduos defenderam o agressor, identificando-se com ele e mencionando que a alienação parental afetaria muitos homens, causada por mães cruéis que tentariam afastar psicologicamente seus filhos dos pais, com o apoio de movimentos sociais e do sistema judiciário. Ou seja: culpam as vítimas, as feministas e a Justiça.

A publicação das cartas com ódio a mulheres atentou contra a boa prática de imprensa recomendada em casos desse tipo. A atenção deveria ter sido dada à vítima. Embora úteis para elucidar o crime (podiam ser usadas pela polícia), as cartas não deveriam ter sido publicizadas, até para impedir a reprodução de atos como esse.

Uma das primeiras associações entre meios de comunicação e suicídios ficou conhecido como “efeito Werther”, a partir da novela de Goethe, publicada em 1774, na qual o personagem se mata com um tiro após não ter sido correspondido. Logo após sua publicação houve relatos na Europa de um aumento de suicídio de jovens por esse método. Também há evidência de que esse tipo de efeito também pode acontecer após a divulgação de homicídios em massa.

Crimes como esse podem se repetir, é o chamado “efeito imitação”, e já tivemos notícias de duas ocorrências semelhantesdepois do que ocorreu em Campinas. A boa prática recomendada nesses casos é divulgar o fato de forma limitada e dar o principal enfoque às vítimas e à comunidade envolvida, assim como citar medidas preventivas, sem causar sensacionalismo. O crime já foi grave demais para tantos detalhes extremos serem expostos. Divulgar manifestos de ódio e focar a atenção demasiadamente no perpetrador é considerado como um fator que pode incentivar a repetição de atos do mesmo tipo por pessoas com motivações semelhantes.

Para evitar ocorrências futuras é necessário olhar para as vítimas mulheres e compreender a motivação do delito, mas isso não pode ser feito somente com medidas de impacto populista. É indispensável pensar em prevenção, tanto de suicídios como de feminicídios. Para tanto, precisamos menos de sensacionalismo e mais responsabilidade, e no caso de assassinatos motivados pelo gênero, combater o machismo e focar especificamente em políticas públicas para mulheres, debater gênero nas escolas, combater o preconceito e as opressões de gênero, orientação sexual e raça. É possível dar visibilidade a um crime como esse com respeito às vítimas e ao público. É somente dessa forma, com a colaboração de uma imprensa responsável que conseguiremos impedir a sua repetição.

*Feminicídio é a mais grave forma de violência contra a mulher, tendo esse termo sido usado pela primeira vez por Russell em 1976.

Luciana Boiteux é professora associada de direito penal e criminologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Luís Fernando Tófoli é professor-doutor de psiquiatria da Universidade Estadual de Campinas, coordenador do Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos.

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