Mais de 70% das mulheres, em todo o mundo, sofrerão algum tipo de violência de gênero em sua vida, segundo dados da ONU (2011). Só no Brasil, uma mulher é estuprada a cada 11 minutos, mas apenas 10% fazem a denúncia. Essa semana, dois casos vieram à tona na mídia, debates viralizaram nas redes sociais e, mais uma vez, voltamos a discutir amplamente no país casos de violência contra a mulher.
Há alguns dias, uma mulher de 23 anos foi abusada sexualmente em um ônibus que passava pela Avenida Paulista. Diego Ferreira de Novais, de 27 anos, ejaculou em seu pescoço enquanto ela dormia no banco. Pego em flagrante e denunciado por uma delegada por violência sexual, ele ganhou o direito de responder em liberdade, apesar de ser acusado de vários outros estupros. Até agora já surgiram 17 casos, mas ninguém duvida que o número possa continuar crescendo — em um BO de junho deste ano o delegado afirmou “ele não vai parar”.
Dois dias antes desse caso vir à tona, a escritora Clara Averbuck estava voltando para casa sozinha no domingo à noite (27/08), depois de ter bebido com amigos, e diz ter sido estuprada pelo motorista do Uber. Segundo o relato que a escritora fez em suas redes sociais, no momento em que ele a “ajudava” a sair do carro, teria colocado a mão dentro de sua saia e introduzido o dedo em sua vagina. Sentindo-se violentada por ser mulher e estar vulnerável, ela decidiu não ir a uma delegacia para fazer a denúncia, pois afirmou não confiar no sistema.
A escritora publicou o caso em suas redes sociais, que foi amplamente compartilhado e gerou a campanha #MeuMotoristaAbusador, para que outras mulheres pudessem denunciar a violência sofrida no transporte privado. Em diversos relatos, as vítimas assumiram o medo de registrar os casos, assim como Clara, tanto pelo constrangimento diante as autoridades, quanto por temer uma nova agressão por parte do acusado, que muitas vezes tem o endereço da casa ou do trabalho da vítima. A solução acaba sendo levar objetos cortantes na bolsa, enviar a amigos ou familiares os dados do carro e do motorista ou até mesmo abrir a porta e saltar do veículo em movimento na hora do desespero.
Uma história que se repete
Como ocorre sistematicamente, as vítimas são tratadas por parte da sociedade como responsáveis pelo próprio abuso, seja por estarem bêbadas depois de uma festa seja por terem dormido no ônibus. Tanto a justiça quanto a população tiveram dificuldade de entender o que aconteceu como um estupro.
Para José Eugenio do Amaral Souza Neto, juiz que liberou o abusador do ônibus, o homem não cometeu um crime, apenas uma “importunação ofensiva ao pudor”, porque não houve violência física. “Ele foi liberado em uma audiência de custódia, que é uma luta dos movimentos sociais pelo desencarceramento, mas que acaba sendo usada para soltar um violador sexual. O sistema é seletivo. Quem é réu e quem é vítima? Quem a justiça está protegendo? A mulher é sempre suspeita por esse olhar tutelar do direito”, diz Ana Gabriela Braga, doutora e mestre em Direito Penal e Criminologia, e professora da UNESP. A decisão reflete o pensamento de que o espaço público é do homem; não faz diferença se ele ejaculou no corpo de uma mulher ou na parede do ônibus.
Os casos não são exceção e isso foi comprovado ao longo da semana, com a divulgação pela mídia de histórias semelhantes, não só em São Paulo, mas também em todo o país. “O precedente é péssimo para o enfrentamento da violência de gênero. Primeiro, porque desencoraja outras mulheres a denunciarem seus agressores, pois mostra que nem sempre quando você denuncia é levada à sério; segundo, porque passa a mensagem para todos os homens que fazem, fizeram ou pretendem fazer isso de que eles sairão impunes”, explica a advogada Marina Ganzarolli, uma das criadoras da Rede Feminista de Juristas, que presta atendimento a mulheres vítimas de violência.
Segundo pesquisa dos Institutos Data Popular e Patrícia Galvão, 98% da população tem conhecimento da Lei Maria da Penha, mas metade dos entrevistados afirmou acreditar que o modo como o sistema de Justiça pune não reduz a violência contra as mulheres. E, mais, 85% avalia que as mulheres têm mais chances de serem assassinadas se denunciarem seus agressores, mesmo que a maioria das pessoas ainda acredite que é preciso realizar as denúncias.
Além da Lei Maria da Penha, a lei usada em casos de violência sexual é a Lei de Dignidade Sexual (12.015/2009). Há oito anos, ela sofreu uma alteração em que os títulos dos crimes de dignidade sexual deixaram de ser da esfera privada e passaram a ser públicos. Desde então, estupro no Brasil é definido como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Traduzindo: qualquer ato de cunho sexual, como o toque, o estímulo, masturbação, sexo oral, vaginal, anal, enfim, qualquer ato de natureza sexual em que uma das partes envolvidas foi obrigada — daí a violência ou ameaça — a participar sem vontade, ou seja, sem o seu consentimento.
Assim, tudo isso passou a ser julgado com pena mínima de seis anos de reclusão. Mas, o que seria uma vitória em relação ao aumento da pena, acaba tendo um efeito contrário, porque os juízes tendem a não aplicar a lei por não reconhecerem certas violações como estupro. Para Ana Gabriela Braga, o problema está na interpretação machista e heteronormativa da lei. “A questão não é pedir penas maiores ou insistir em um punitivismo. Existe arbitrariedade entre os operadores de justiça, que inclui delegados, ministério público e juízes. Enquanto isso não mudar, o sistema vai continuar prendendo negros e pobres e não protegendo as mulheres”, diz.
“Vivemos em um mundo em que a desigualdade de poder entre homens e mulheres é imensa. Nossa sociedade é machista, racista e heteronormativa, A Justiça não é diferente. E é por isso que, em particular nos crimes contra a mulher, denúncia não é sinônimo de justiça mesmo”, diz a Marina Ganzarolli. Para ela, o judiciário e o processo penal não foram feitos ou pensados a partir da perspectiva da vítima. O que podemos fazer? “Nos unir e lutar pela aplicação dos nossos direitos, e pela transformação da nossa educação, para que as crianças, meninos e meninas, recebam uma educação que não construa masculinidades tão deturpadas como essa”.
E fica a pergunta: quando as mulheres, em vez de escolher os caminhos em que se sentem mais seguras, poderão ter a certeza de que todos os caminhos são seguros?