Os abusos sexuais cometidos por agentes da Minustah

11 de agosto, 2016

(Opera Mundi, 11/08/2016) Missão de paz da ONU no Haiti está desacreditada, seus propósitos iniciais não foram alcançados e direitos humanos da população haitiana foram violados

A ONU (Organização das Nações Unidas) conta atualmente com 16 operações de paz em andamento e em 2016 completa 68 anos de realizações de missões de paz. Uma delas ocorre no Haiti e se intitula Minustah (Missão das Nações Unidas para Estabilização no Haiti). Seu objetivo é “restabelecer a segurança e a estabilidade, promover o processo político, fortalecer  as instituições governamentais, assim como promover e proteger os direitos humanos”. Entretanto, esses propósitos são colocados em xeque quando nos deparamos com o fato de que entre 2008 e 2013 foram registradas 480 denúncias de abuso sexuais em duas missões específicas, do Haiti e da Libéria, sendo que um terço desse número envolve menores de idade.

Em março de 2016, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, emitiu um relatório sobre os casos de abusos sexuais por parte de agentes da organização em missões de paz. Nele consta que houve 99 denúncias de abusos em 2015 em operações de paz, sendo 69 cometidos por soldados e 30 por outros tipos de agentes, nove destes ligados a soldados da Minustah. Dessas alegações, 47 ainda permanecem sob investigação, 16 não teriam “fundamentos sólidos” e seis se confirmaram.

Equipes de investigação, segundo o documento, devem aumentar. Assim, quando uma denúncia de abuso for recebida, as provas podem ser coletadas mais rapidamente. Como as tropas permanecem sob responsabilidade do seu próprio país, este deverá encaminhar investigadores em até no máximo 10 dias e a conclusão do caso deverá acontecer em seis meses. Em casos que envolvam crianças, esse prazo deve reduzir-se pela metade: cinco dias para enviar investigadores e três meses para a conclusão do caso.

Soldados brasileiros em treinamento para atuar em missão da ONU no Haiti (Foto: Marcello Casal Jr./ABr/nov.2010)

Todas essas medidas são desacreditadas por ONGs que monitoram as denúncias. Uma delas, a ONG Code Blue, afirma: “o que a ONU fez exatamente diante das mais de mil denúncias contra funcionários por abuso sexual desde 2007? Debaixo da máscara de que toma alguma providência, o que realmente existe é a inércia”.

A Save the Children realizou em 2007 entrevistas com 341 crianças, de Haiti, Sudão e Costa do Marfim. O resultado foi um relatório em que a organização aponta que os abusos ocorrem por parte de vários corpos de paz e segurança, inclusive da ONU. Os países em destaque são Costa do Marfim e Haiti. O documento também afirma que os abusos ocorrem com crianças desde os seis anos de idade e que a principal razão para que não haja mais denúncias é o medo de represálias.

O Brasil tem especial importância neste contexto, visto que comanda a Minustah. Assumiu a missão para demonstrar uma maneira própria de conceber missões de paz, diferente dos modelos impostos por outras nações. Uma das hipóteses de o Brasil ter assumido a Minustah é para ter o status de “global player”, isto é, participação no processo de tomada de decisões globais em áreas distintas.

Após 12 anos, a missão está extremamente desgastada. Sua previsão inicial era de seis meses. Em maio de 2014, o senador haitiano Jean Charles Moise esteve no Brasil para entregar um documento que pedia a retirada das tropas da ONU no país. Segundo ele, a presença de tropas estrangeiras equivaleria a uma ocupação, com o país sob o controle de nações capitalistas e com a missão de estabilização do país longe de ser cumprida, tendo na verdade promovido violações de direitos humanos, incluindo os abusos sexuais.

Um dos casos exemplares de violação de direitos humanos foi denunciado em 2012. Um garoto de 14 anos com deficiência mental que havia sido abandonado pela família na cidade de Goinaves, no norte do Haiti, próximo a um centro que abrigava agentes paquistaneses da missão de paz, era violentado pelos soldados regularmente. Após a denúncia, feita por moradores locais, a ONU levou especialistas de Nova York e Brindisi (Itália) ao local, que descobriram que a violência sexual cometida pelos soldados contra o menino ocorria há anos, passando de um contingente a outro.

De acordo com a Convenção sobre Privilégios e Imunidade da ONU, as leis do país que recebe as tropas de paz não podem ser aplicadas aos agentes, cabendo ao seu país de origem aplicar disciplina e punições. Tanto o Senado como os ministros da Justiça e das Relações Exteriores do Haiti pediram que a resolução fosse suspensa pela ONU para o país, para que os soldados fossem julgados pela justiça haitiana.

Após um primeiro encontro de pressão, o caso foi tratado da maneira que normalmente se procede em casos de abusos sexuais. O principal suspeito admitiu o abuso e foi expulso da corporação, sendo condenado a um ano de prisão no Paquistão. Os dois outros agentes acusados também foram expulsos da corporação, mas não foram presos. Até a finalização deste texto, o garoto está sob os cuidados do governo haitiano, vivendo em um abrigo fora de Porto Príncipe e que não possui relações com a ONU.

No que se refere ao combate a condutas violentas nas operações de paz da ONU, há atualmente no Haiti o que se intitula Focal Point on Sexual Abuse and Exploitation (SEA). Este órgão recebe denúncias de abusos e é responsável por aumentar a consciência popular em relação ao tema, além de buscar repostas para as más condutas relacionadas aos abusos sexuais. O problema, no entanto, é que esse órgão de fiscalização também acumula as funções gerais e de treinamento das tropas.  O documento recente do secretário-geral da ONU defenda que sejam criados espaços seguros para as denúncias, com a disponibilidade, por meio de uma base de dados online, informações sobre os agressores e quais punições tiveram, por exemplo.

O fato é que a missão no Haiti está desacreditada, seus propósitos iniciais não foram alcançados e diversos direitos humanos da população haitiana foram violados. O “jeitinho” brasileiro de estruturar missões de paz, pelo visto, deve ser melhor pensado. Não que devam ser descartados os méritos da missão, que conseguiu ajudar o país em diversos âmbitos, mas as denúncias de abusos sexuais não podem ser ignoradas. Mecanismos ágeis de denúncias devem ser melhor avaliados e devem ser implementado treinamento aos agentes e apoio às vítimas. Essas são apenas algumas das medidas mais urgentes a serem tomadas. O principal foco, na verdade, deveria ser erradicar essa violência que vem desacreditando o Brasil frente a ONU, além de estar causando mais transtornos a um país que, na verdade, deveria estar sendo amparado.

Isabel Cristina de Sá

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