Pelo Facebook, uma famosa escritora e jornalista avisa que foi vítima de estupro. Na postagem em sua página pessoal, ela conta que, ao pegar um carro cadastrado no aplicativo de transporte particular, sofreu violência por parte do motorista. O texto, com poucos mas suficientes detalhes sobre como o homem teria enfiado o dedo em sua vagina à força e interrompido a corrida, arremessando a mulher na rua, teve, em poucas horas, milhares de compartilhamentos, e gerou até mesmo uma hashtag (#MeuMotoristaAbusador), para que mais mulheres desabafem sobre histórias que viveram em situações semelhantes.
(Folha de S.Paulo, 28/08/2017 – acesse no site de origem)
É importante que encontremos espaço – seja ele no formato que for – para abrir nossas dores mais íntimas para o mundo. Para muitas de nós, partilhar é um dos caminhos para a dissolução do nó que um abuso causa na alma. Por isso, exposições como a da jornalista, ainda que impiedosas com sua protagonista, podem também ser úteis àquelas mulheres que, até então, se mantinham caladas.
Leia mais: Após estupro, Clara Averbuck cria campanha para denunciar casos (O Globo, 28/08/2017)
O silêncio, muitas vezes, vem do medo do julgamento. Afinal, vivemos em um mundo em que, mesmo com Simones de Beauvoir, Camiles Paglia e Margarets Atwood dispostas a nos catequizar e guiar pelo caminho da luz, insistimos em erros ancestrais que castigam, isolam e reduzem o feminino a papéis injustos e traumatizantes.
E quando digo “insistimos”, é porque o fazemos também nós, mulheres, umas às outras, ainda que nem nos demos conta do machismo enraizado em nossos pensamentos. Quando, por um descuido ou vício, questionamos o discurso de uma igual. Quando invalidamos um testemunho que, apenas por sua atmosfera grotesca, não precisaria de provas. Quando botamos em xeque o relato de uma cantada, assovio, assédio, violação, e cogitamos, ainda que por uma fração de segundo, que “talvez ela esteja inventando”.
Clara não está inventando – é da vítima de abuso que mora em mim que brota minha convicção. Afinal, o que somos nós, mulheres brasileiras, se não vítimas consumadas ou em potencial de homens violentos que se supõem no direito de forçar sobre nós suas vontades?
Vivemos em um país que registra 10 casos de estupro coletivo ao dia. O que será de nós como sociedade se cada uma dessa dezena de mulheres se vir diante de uma imensa plateia de jurados, dispostos a decidir, baseados em conceitos subjetivos, se a história que apresentam à sua frente é verídica ou invenção louca de sua imaginação carente de amor e carinho?
A resposta é: seguiremos fracassando de maneira repulsiva como seres humanos. Seguiremos presos e afundados na cultura que culpa a vítima e suas roupas curtas, sua atitude provocativa, seu estado mental e sua liberdade por todo e qualquer ato de violência que ela venha a sofrer.
Ainda há tempo, no entanto. As condições atuais de esclarecimento intelectual, compreensão do panorama histórico, relevância da luta e, sobretudo, da coletividade, podem, sim, nos guiar, afinal, rumo a um cenário em que haverá, antes de qualquer outro sentimento, a compaixão.
Em que será possível entender que, sim, continua permitido não ir com a cara de alguém, mas que, mesmo assim, é dever moral solidarizar-se em momentos urgentes como este. Afinal, uma mulher abusada não quer holofotes, ao contrário do que a selvageria prega. Uma mulher abusada quer, isto sim, ser acolhida, ouvida e curada. É hora de praticar a empatia.