Precisamos rever a legislação ultrapassada e o sistema que não protege adequadamente as vítimas
(Época, 01/09/2017 – acesse no site de origem)
No fim de agosto, a violência sexual gerou debate intenso, principalmente por dois casos.
A escritora Clara Averbuck relatou em seu perfil do Facebook o episódio de estupro que sofreu por parte de um motorista de Uber, em São Paulo. Manifestou sua decisão de não procurar a delegacia para denunciar a violência, por não confiar no sistema de Justiça e ter conhecimento de como vítimas de violência sexual são nele maltratadas. Clara chegou a ser questionada de forma incisiva na redes sociais sobre sua decisão e culpabilizada por suposto desestímulo a vítimas na procura de seus direitos.
Poucas horas depois, a passageira de um ônibus que trafegava pela Avenida Paulista foi surpreendida com um jato de esperma de um agressor que acabava de se masturbar a seu lado. O autor da violência, que apresenta outras passagens criminais pela prática de delitos de mesma natureza, foi mantido dentro do ônibus até ser retirado por policiais militares e levado ao 78º Distrito Policial, onde foi lavrado seu flagrante pelo crime de estupro. Encaminhado o agressor à audiência de custódia, o magistrado responsável decidiu por sua soltura, por entender que os fatos melhor configurariam a contravenção da importunação ofensiva ao pudor.
As duas agredidas, nesses casos, não estão sozinhas. A violência sexual contra meninas e mulheres constitui uma das formas mais graves de violação aos direitos humanos e faz uma vítima a cada 11 minutos em nosso país. Estima-se que no mínimo 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil e apenas 10% desses casos sejam noticiados à polícia (1). Das vítimas, 89% são do sexo feminino (2). A Organização Mundial da Saúde definiu violência sexual no Informe Mundial sobre Violência e Saúde de 2005 como todo ato sexual, tentativa de consumá-lo, comentários ou insinuações sexuais não desejados; e ações para comercializar ou usar de qualquer outro modo a sexualidade de uma pessoa mediante coação, independentemente da relação com a vítima, em qualquer âmbito, incluído o doméstico, o do lar e o do trabalho. Sabe-se que a violência sexual pode causar consequências físicas e psicológicas nas vítimas, algumas reveladas imediatamente após o trauma e outras a longo prazo. Essas consequências podem resultar em gravidez, doenças sexualmente transmissíveis, depressão, pânico, ideação suicida, distúrbios relativos à própria sexualidade e abuso de substâncias psicoativas.
E o que diz a lei?
No âmbito penal, a Lei nº 11.340/06 – Lei Maria da Penha – define em seu Artigo 7º que a violência sexual, do ponto de vista da vítima, pode ser entendida como “qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”.
O Código Penal, por sua vez, quando dispõe sobre a forma mais comum de violência sexual praticada contra meninas e mulheres, traduzida como estupro, prevê que o tipo penal do Artigo 217-A (estupro de vítima vulnerável) se configura toda vez que o autor mantiver conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 anos; com alguém que por enfermidade ou deficiência mental não tiver o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não puder oferecer resistência. Nesses casos, a violência é presumida pelo legislador, porque a vítima não tinha capacidade de consentir. Já quando a vítima é maior de 14 anos e não se enquadra nas circunstâncias de vulnerabilidade acima citadas, a figura típica é a do Artigo 213, caput (estupro) sempre que o ato sexual tenha sido praticado mediante emprego de violência ou grave ameaça.
Há ainda a figura do Artigo 215 para os casos em que o agente pratica o ato libidinoso com a vítima mediante fraude ou outro meio que dificulte a livre manifestação da vítima. E, para casos de menor gravidade, a contravenção prevista no Artigo 61 da Lei de Contravenções Penais, quando o agente importunar a vítima em local público, de modo ofensivo ao pudor.
Pois bem. O que demonstram, então, os casos de Clara, da vítima do ônibus da Avenida Paulista e outros tantos que, infelizmente, fazem vítimas milhares de mulheres, diariamente, em todos os espaços, públicos e privados? A necessidade de rever o sistema de Justiça, como um todo. A certeza que, apesar de todas as conquistas advindas de tratados e convenções internacionais e de 11 anos de Lei Maria da Penha, nosso sistema é falho e perverso com as mulheres.
Evidente que há algo muito errado quando uma mulher brilhante como Clara, consciente de seus direitos, conhecedora dos aspectos que permeiam a violência de gênero, ativista incansável na luta pelos direitos das mulheres, prefere não denunciar a violência sofrida, por já conhecer os caminhos que devem ser percorridos pela vítima que sofre violência sexual, quando decide buscar ajuda.
Há algo muito errado quando uma vítima é surpreendida com um jato de esperma no pescoço dentro de um transporte público, à luz do dia e na presença de testemunhas, e o responsável é solto em menos de 24 horas, sob o argumento de que não teria havido constrangimento.
E aqui o questionamento não é à decisão em si ou ao magistrado que a proferiu. Essa seria a crítica mais fácil. Mas a verdade é que a decisão espelha outras, diárias, tomadas em casos de idêntica natureza. A crítica é ao sistema como um todo, que confere margem a esse tipo de situação injusta e revoltante.
Há necessidade premente de revisão: no âmbito de uma legislação penal ultrapassada; no âmbito um sistema que não protege adequadamente as vítimas, que não responsabiliza autores de violência, que não previne novas ocorrências e não cuida de minimizar as consequências dela para as vítimas.
Clara não tem culpa. Clara tem razão, infelizmente. Essa é primeira certeza que me vem à cabeça quando me recordo dos inúmeros casos de violência sexual onde as mulheres, ao relatarem o episódio, foram retiradas do banco de vítimas para ocuparem o banco dos réus.
Sabemos que vítimas de violência sexual ainda tendem a suportar por muito tempo caladas a violência que sofreram, até conseguirem romper o silêncio. O silêncio é ainda maior quando a violência é praticada por pessoas conhecidas da vítima, que fazem parte de seu convívio.
Também contribui para o silêncio o medo do estigma, do isolamento social, da discriminação social, além do receio de expor a privacidade para conhecidos ou agentes públicos. Não raras vezes, a vítima também é tomada por sentimento de culpa, acreditando que, de alguma forma, tenha contribuído para aquela situação, colocando-se “em risco” por ter se comportado de forma tida como inadequada para os padrões de nossa sociedade patriarcal. E tudo isso aliado à falta de acolhimento e compreensão por parte do próprio círculo social da vítima ou de instituições que deveriam apoiar. São obstáculos que conhecemos e precisamos criar mecanismos para rompê-los. Como Estado e como sociedade.
Quando uma vítima sofre violência que causa repulsa aviltante à sua dignidade sexual, como no caso do jato de esperma, e assiste a seu agressor ser solto em menos de 24 horas, a situação é preocupante. Quando uma vítima de crime hediondo como o estupro, conhecedora de seus direitos, prefere não acionar o sistema de Justiça, conhecendo-o bem, para evitar revitimização, temos a certeza de que ele não está funcionando. Quando uma vítima prefere calar diante da violência, por receio de não merecer credibilidade no momento da denúncia, diante da dificuldade de demonstração desse tipo de violência, que, pela sua própria natureza, ocorre na clandestinidade, longe do olhar de testemunhas e que nem sempre deixa vestígios físicos, temos a certeza de como o processo penal tem reservado às vítimas a posição desfavorável e cruel.
É preciso escancarar, sem hipocrisia nem tabus, como a ausência de pensamento crítico sobre nosso sistema de Justiça, que não está livre dos julgamentos morais, os quais são determinados por nossas convicções. Ele tem sido responsável pelas mais graves ocorrências de violência institucional contra mulheres e meninas que recorrem à Justiça como última esperança para garantia de seus direitos.
E aqui falando da opção de Clara, a reflexão que também proponho diz respeito ao real motivo para tanta desconfiança em relação à palavra da vítima de violência sexual. Justamente aquela que, paradoxalmente, mais silencia e sofre com o trauma, com o estigma social. Então qual o fundamento para que a palavra dessas vítimas seja permanentemente colocada em dúvida? Qual o sentido de procurar torná-la incrédula com a própria memória, desde o primeiro momento em que ela procura uma autoridade para relatar o episódio de violência? Como se a palavra dessa vítima, em especial, não pudesse ser digna de crédito, pelo simples fato de ela ser… mulher.
A resposta parece estar intrinsecamente ligada à condição histórica da mulher, ao legado de tratamento discriminatório, desumanizado e à persistência dos estereótipos de gênero na nossa sociedade, nas instituições e no próprio sistema de Justiça.
Mas até quando? Quantas gerações ainda serão sacrificadas, até que uma vítima possa recorrer a seus direitos, sem ser julgada por seu comportamento social ou sexual? Sem sofrer dano emocional ainda mais grave que a violência que a vitimou?
Infelizmente, o cotidiano das delegacias, especializadas ou não, dos atendimentos perante os serviços da rede de atendimento à mulher em situação de violência e das varas judiciais onde tramitam os casos de violência contra a mulher demonstra que, não raras vezes, essas vítimas são mesmo recebidas com descrédito.
Meninas e mulheres que relatam episódios de violência sexual ainda são cobradas nos mais diversos detalhes, dentro de sua narrativa, questionadas sobre informações difíceis de serem fornecidas por qualquer vítima, ainda mais por aquelas que sofrem com o pós-trauma que decorre desse tipo de violência.
É o caso das indagações sobre seu comportamento antes, durante e depois do ato sexual, suas vestimentas, o fato de estar ou não sozinha naquele local, o motivo desse comportamento, o tempo exato de cada ato sexual, a ordem cronológica, suas reações e sentimentos, assim como as circunstâncias relacionadas ao autor do crime. A realidade é ainda mais tormentosa para mulheres que ocupam posição social inegavelmente mais desvantajosa que outras, em função da combinação do fator de gênero com demais marcadores sociais, tais como raça, etnia, religião, classe socioeconômica, identidade e orientação sexual.
Portanto, apesar dos inegáveis progressos e conquistas civilizatórias relacionadas aos direitos das mulheres nos últimos anos, persiste a assimetria das relações sociais e a valoração desigual dos papéis de gênero tão arraigados na sociedade, que perpetuam a violência. E essa desigualdade fica ainda mais evidenciada quando analisamos o tratamento reservado às vítimas de violência sexual quando denunciam um episódio de violência.
Não se pode conceber que o processo de oitiva da ofendida seja mais traumático que o próprio crime que a vitimizou, sob pena de descrédito absoluto nas instituições.
Já é passada a hora de rompermos com esse paradigma que reserva às vítimas de violência sexual, valoração a menor de seus direitos ou credibilidade menor de sua palavra, pelo simples fato de serem mulheres. E para isso devem ser exigidos com rigor e em todas as esferas um olhar mais especializado sobre os aspectos da violência de gênero (como no caso do ônibus) e o fim da desconfiança em relação à palavra dessas vítimas de violência sexual, ou seja, sua revitimização. A esse propósito, soam oportunas as palavras do sociólogo Edgar Morin: “Não se pode reformar a instituição sem uma prévia reforma das mentes, mas não se podem reformar as mentes sem uma prévia reforma das instituições”.
1) Nota Técnica Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde (Ipea, 2014)
2) Sinam (Sistema Nacional de Atendimento Médico)
Silvia Chakian é Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo e especialista em violência contra as mulheres