Para professora, mais eficaz que prender é enviar o agressor para um programa que trabalhe a afetividade
(O Estado de S. Paulo, 25/09/2016 – acesse no site de origem)
Os mais de 20 anos de estudos focados em sistemas de Justiça, representatividade política e medidas de combate à violência doméstica na América Latina garantiram à professora britânica Fiona Macaulay um português fluente e uma visão aprofundada sobre a realidade brasileira quando o tema é crime contra a mulher. Ligada ao Departamento de Estudos pela Paz da Universidade de Bradford, na Inglaterra, ela esteve no Brasil nesta semana. Ao Estado, disse que o enfrentamento a esse tipo de violência tem de ir além da ostensividade policial, com uma aposta na educação.
É possível prevenir a violência doméstica?
É possível prevenir, mas tem de haver um enfoque além da polícia. A prevenção começa com as normas da sociedade e elas se estabelecem primeiro na escola, e tem de ser trabalhado de uma forma muito competente e contínua. Tem de trabalhar de uma forma afetiva com meninos e meninas sobre relacionamentos e reconhecimento de emoções. Sei que nesse momento no Brasil a questão da educação pública é um assunto politizado. Geralmente, as pessoas não entendem sequer o significado da palavra gênero, mas há relação com as normas sociais que dirigem e formam o comportamento. Todos nós sabemos que há uma tolerância social a violência doméstica e a violência nasce dessas normas. Essa tolerância se expressa de diferentes formas. A prevenção é completamente atingível, mas tem de ser de uma forma continuada, baseada em muita pesquisa, e depois tem de investir na avaliação dessa política pública, senão nunca se descobrirá se está havendo impacto ou não.
Há um modelo mais eficaz?
As respostas mais eficazes têm sido as chamadas deearly intervention, as precoces. Serve para homens que cometeram a primeira agressão e já são encaminhados para atenção em um programa que discute esse comportamento. O problema da violência doméstica reside nos ciclos de ataques contra mulheres vulneráveis, que acabam se acostumando com esse tipo de relacionamento, e onde também o homem está cercado por pares que pensam do mesmo jeito que ele. Esses homens ligam muito mais para o respeito de outros homens do que ligam para a opinião das mulheres. Isso vale tanto para um cara privilegiado, como o caso do estudante de Stanford, que não achava que tinha cometido um crime, como para o envolvido com o tráfico, a pessoa lá da boca de fumo, com uma vulnerabilidade maior.
Ou você coloca o agressor num programa de mudança de comportamento, que ainda envolve várias polêmicas acerca da efetividade de várias metodologias, ou se coloca na cadeia. Eu conheço muito bem o sistema prisional brasileiro, onde só se espera que a violência seja reproduzida. Lá, não há programas, ou há poucas iniciativas nesse sentido. O ambiente das penitenciárias é tão violento, de uma hipermasculinidade, que imaginar que um cara na cadeia por violência doméstica e saia de lá melhor é uma bobagem, esse é o problema.
Qual a realidade latino americana nesse assunto e quais são os bons exemplos?
Um dos bons exemplos está na Nicarágua. É um país pequeno, mas que tem uma taxa de encarceramento baixa, mesmo tendo passado por uma guerra civil nos anos 1980. Morei lá nessa época. Eles têm uma polícia bastante progressista, no sentido de se automodernizar no atendimento. E também o movimento de mulheres. Um dos grupos de referência se chama “Puntos de Encuentro”, com duas décadas de engajamento na esfera de comunicação social. Mais recentemente, fizeram uma telenovela, que se tornou muito popular e que trata da questão da violência doméstica. Esse tipo de intervenção trabalha mais os valores da sociedade em um nível macro, mas de uma forma mais eficaz do que simplesmente cartazes com rostos inchados e a mensagem de “não bata na mulher”, o que acaba sendo ineficaz. Muitos países da América Latina têm problemas semelhantes ao Brasil, mas acredito que esse diálogo social aliado a um movimento de mulheres forte e uma polícia modernizada pode se mostrar como um caminho consolidado para a prevenção.
A senhora já estuda a situação da violência doméstica no Brasil há mais de uma década, época na qual cobrava que o movimento crescente de mulheres passasse a transformar a luta em leis, reservas orçamentárias e capacitação de policiais e operadores do sistema de Justiça. Desse período para cá, o Brasil melhorou ou piorou?
Está melhorando, sem dúvida. Esse estudo que você citou foi concluído há mais de dez anos e, na época, o Brasil era praticamente o único da região que não tinha uma lei específica de combate à violência doméstica. O que era surpreendente dada a atuação em convenções internacionais sobre o assunto. Finalmente, veio a Lei Maria da Penha, pegando tudo que já havia de melhor idealizado no continente. A lei representou um avanço enorme e foi fruto de um debate de mulheres com os operadores da lei. Agora, o que está em debate é, por exemplo, a agilidade na concessão das medidas de proteção. A lei estabelece claramente que o Estado deveria providenciar várias ferramentas para proteção da vítima, mas ainda faltam recursos e mecanismos. Essa é a frustração atual. A legislação me parece adequada, mas é preciso investir muito mais.
Pesquisa de opinião mostrou nesta semana que ao menos um terço da população ainda culpabiliza a vítima mesmo ela tendo sido vítima do crime de estupro. Por que há a resistência dessa visão?
Essa é uma atitude bastante comum. Parece que a vergonha gruda na vítima, mas quem comete o crime é que deveria se sentir envergonhado. O crime acontece porque alguém estupra, e não porque a mulher vestiu uma saia curta, mas, sim, porque alguém decidiu atacá-la. É sempre uma decisão por parte do homem. O que falta é uma repetição disso, parar de falar da vítima e focar nos agressores, que ou se sentem absolutamente privilegiados e impunes para fazer qualquer coisa ou o fazem para demonstrar controle sobre outra pessoa.
Marco Antonio Carvalho (O REPÓRTER VIAJOU A CONVITE DO FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA)