(Marie Claire, 11/07/2016) Três adolescentes, três cidades e dezenas de agressores. Fernanda, Camila e Sandra* foram violentadas por vários homens de uma só vez. A frequência com que a crueldade acontece deixa claro: há muito mais casos de abuso coletivo do que se notifica no Brasil. Em entrevista à Marie Claire, as três meninas denunciam as atrocidades a que foram submetidas e contam como fazem para recuperar a vida depois do trauma
Fernanda* tem 16 anos e adora filmes de terror. Na sexta‑feira 13 de maio, passou a noite assistindo a seus preferidos na casa da avó, em São Paulo. Foi dormir quando já estava amanhecendo. Às 5 da tarde, pegou um ônibus para voltar para casa, na Zona Oeste da cidade. Cansada, dormiu no trajeto. Ao acordar, não reconheceu a vizinhança. Perguntou, então, para dois meninos se sabiam onde poderia pegar um ônibus de volta. Eles sugeriram que ela descesse com eles, para lhe mostrarem o ponto. Assim que colocaram os pés no asfalto, um deles a abraçou pelos ombros, colocou uma lâmina nas costas dela e disse: “Você vai com a gente”. Andaram por quase uma hora dentro de uma favela. Por onde passavam, cumprimentavam conhecidos. “Fiquei com medo de pedir ajuda”, diz Fernanda, com o olhar cabisbaixo e as mãos trêmulas. Chegaram a uma casa onde acontecia uma festa. Só havia homens. Os três atravessaram todos os cômodos e entraram em um quarto escuro. Os meninos pediram que ela tirasse a roupa. Ela respondeu que não o faria. Nesse momento, um terceiro homem entrou no cubículo e deu tapas, socos no rosto e chutes nas costas de Fernanda para obrigá-la a se despir. Implorando que ele parasse, ela perguntou o que tinha feito para eles. Quanto mais suplicava, mais eles a agrediam. Começou, então, a pior parte de um verdadeiro enredo de terror.
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O primeiro a estuprou. Depois o segundo. E então o terceiro. Depois os três juntos. “Foi entrando gente no quarto e não sei quantos foram ao todo. Chorei quieta e não falei mais nada. Me jogavam de um lado pro outro, como uma boneca de pano.” No fim da sessão de tortura, deram a ela uma garrafa de água. “Acordei só no outro dia, acho que fui dopada porque apaguei. Fiquei quieta para que pensassem que estava dormindo.” No domingo, outro pesadelo. “Foi todo mundo junto outra vez. Um deles colocou bebida alcoólica dentro da minha boca e me obrigou a engolir. Também esfregou cocaína no meu nariz. Fiquei zonza, mole, não conseguia mais me mexer. Lembro apenas de ficar olhando para fora do quarto pela fresta da porta e vi que tinha muita gente na casa. Minha vontade era morrer para acabar com aquilo logo. Depois que acabou, me jogaram na rua, de sutiã, shorts e sapatilha.”
Especializada em atender vítimas de violência doméstica, a promotora de Justiça Maria Gabriela Mansur, de São Paulo, diz que há um roteiro comum nos enredos de estupro coletivo. Em geral, as vítimas são adolescentes. Os agressores costumam ser menores de idade, mas motivados e liderados por um adulto. Em geral, criminosos temidos ou populares que têm o hábito de dopar a vítima ou se aproveitar do fato de ela ter bebido ou usado drogas. “As meninas não denunciam por medo de retaliação. Ficam com a moral e a intimidade profundamente abaladas. Não pedem ajuda por medo de serem questionadas e até ridicularizadas”, afirma Maria Gabriela. “Já atendi alguns casos e todos tinham esse componente.”
Sandra não contou sobre o estupro para ninguém. “Tenho medo de que eles me queimem [gíria para assassinar].” Nos meses que se seguiram, não conseguiu se relacionar nem se aproximar de homens. “Sempre lembro do que aconteceu. Depois disso, fiquei mais quieta, com dificuldade para dormir. Acordava a noite chorando e dizia pros outros que estava ‘com nervoso’.” Cinco anos depois, está casada e tem uma filha de 1 ano. O primeiro desabafo foi para uma amiga, há poucas semanas, quando o caso da adolescente carioca foi divulgado. “O maior medo da minha vida é eles saberem que contei o que aconteceu para alguém”, diz. A advogada Eloisa Samy, que trabalhou no caso da vítima agredida por 33 homens, costuma atender meninas carentes que sofreram violência sexual e diz que casos de estupro em comunidades não são raros. “Quem pratica esses atos convive com o medo de morrer e com a vergonha”, afirma. O caso dos 33 contra uma é emblemático. Depois que veio à tona, os criminosos ameaçaram a vítima de morte. Agora ela está em um programa de proteção à testemunha do governo federal e deixou o Rio de Janeiro.
No mesmo dia em que essa história paralisou o Brasil, outro caso, o de Camila*, de 17 anos, em Bom Jesus, no Piauí, também foi noticiado. Cinco dias após ficar com um rapaz, ele e outros quatro amigos a levaram para uma construção abandonada. “Estava sentada em uma praça quando perguntaram se eu queria ir para outro lugar com eles, não vi problema, já os conhecia, e respondi que sim. Acabamos indo para a laje de uma obra. Lá, um deles disse que era a última vez que íamos nos encontrar e que nunca se sabe o dia de amanhã. Perguntei se ele ia morrer, nunca imaginei que fosse comigo”, conta Camila. “Outro me ofereceu uma garrafa com bebida alcoólica. Tomei quase metade. Pouco tempo depois, comecei a sorrir. Olhava minha mão e a via grande. Aí passei mal, fiquei com vontade de vomitar. Desci da laje com um dos garotos, que começou a se insinuar para mim. Eu o empurrei e em seguida desmaiei. Não lembro de mais nada.”
Um a um, a estupraram. Amarraram seus braços com a própria roupa e a amordaçaram com a calcinha. Colocaram isopor dentro de sua boca para evitar que gritasse por socorro. Morderam seu pescoço, machucaram suas mãos, costas e cotovelos. Camila foi encontrada no dia seguinte, desacordada e seminua. Foi levada inconsciente para o hospital. O Ministério Público pediu a prisão dos cinco. O maior de idade está preso e os quatro menores foram soltos pelo juiz do caso, Eliomar Rios Ferreira, alegando que os jovens têm bom comportamento.
A VIDA APÓS A TRAGÉDIA
Desde que voltou para casa, Camila tem enfrentado outro tipo de violência: a moral. Na escola, uma colega disse que a responsável pelo estupro era ela. Nas ruas da cidade, os olhares são de recriminação. “As pessoas apontam o dedo. É uma mistura de preconceito e curiosidade. Fico preocupada e com raiva”, diz a tia da menina, que a cria. “Dizem que a culpa é minha por ter ido para a obra com eles. Fico triste, mas acho que não adianta reagir. Todo mundo acha que eles são inocentes porque são homens”, diz Camila. Ela conta que quase não tem dormido desde o episódio e que também adquiriu o hábito de falar sozinha. “Fico me fazendo perguntas, tentando entender o que aconteceu.”
A dificuldade de aceitar a violência é o primeiro estágio do trauma das vítimas desse tipo de crime. A psicóloga Adriana Marcondes, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, explica que a reação instantânea das agredidas é pensar que têm alguma responsabilidade na tragédia. “O raciocínio deve ser outro. Aquilo que acontece em nossas vidas não depende exclusivamente de nós mesmos. A pessoa não foi estuprada porque andou numa rua escura e sim porque lá havia um estuprador”, diz. Parte desse processo é desenvolver uma rejeição com o próprio corpo. “Muitas vítimas de violência sexual passam a se esconder em roupas largas e toucas depois do trauma”, afirma Sueli Amoedo, da Coordenadoria da Mulher de Taboão de Serra, um centro de acolhimento para mulheres nessa situação. É lá que Fernanda, de São Paulo, faz acompanhamento com terapeutas que trabalham a mente e o corpo. “Ainda não sabemos como reconstruiremos nossas vidas”, diz a mãe da adolescente, que pediu para ser afastada do trabalho para acompanhar a filha nas consultas médicas, judiciais e nos tratamentos.
Na noite em que foi finalmente solta, Fernanda foi para a delegacia. Fez boletim de ocorrência, exames no Instituto Médico Legal e foi atendida no hospital Pérola Byington, referência no tratamento de vítimas de estupro. Tomou coquetel antiviral, pílula do dia seguinte e anda com uma caixa de medicamentos que vai ter de tomar por seis meses. Ficou com um sangramento e uma ferida na vagina, hematomas e dores pelo corpo, parou de sair com os amigos e tem dificuldade até para falar. Para descrever seu estado psicológico, recorre a uma metáfora. “Imagine uma mosquinha. Alguém vai e tira as asas dela. Ela não pode mais voar. Depois, tira as patas. Ela não pode mais andar nem fazer qualquer outra coisa, a não ser esperar para morrer. É assim que me sinto. Eles tiraram tudo de mim”, diz. “O mundo ficou diferente. Sempre ajudei qualquer pessoa na rua e pensava que, se precisasse, teria alguém disposto para me acudir. A vida toda achei que os monstros só existiam nos filme de terror. Os monstros somos nós. Andam com a gente.”
Maria Laura Neves. Colaboraram Yala Sena e Daniela Carasco
*Os nomes foram trocados para proteger a identidade das entrevistadas
Acesse no site de origem: A realidade abafada dos estupros coletivos no Brasil (Marie Claire, 11/07/2016)