A lei que proíbe a revista íntima nas unidades prisionais de São Paulo existe desde 2014, mas ainda não é cumprida no sistema penitenciário, no entendimento do Ministério Público estadual. Um relatório nacional da Secretaria de Direitos Humanos, da Presidência da República, divulgado no fim de 2016, aponta que “o procedimento de revista íntima ainda ocorre mesmo que possua uma proibição legal” em ao menos uma prisão na capital paulista.
(UOL, 29/01/2016 – acesse no site de origem)
Além disso, a Promotoria de Justiça de Direitos Humanos investiga denúncias de violações de direitos em unidades prisionais paulistas. De acordo com os promotores, apesar de proibido pela lei 15.552, visitantes de presos são obrigados a tirar a roupa e a fazer sequências de agachamentos, com o objetivo de verificar se carregam dentro do corpo objetos ilícitos, como drogas, por exemplo. A lei nomeia esse procedimento de “revista íntima”, enquanto a promotoria se refere à prática como “revista vexatória”.
Um documento entregue à Corregedoria Geral da Justiça em julho de 2016, assinado por promotores e defensores públicos estaduais, afirma que a realização da revista vexatória (expressão usada no texto) é confirmada “por todas as direções de unidades prisionais do Estado de São Paulo, com exceção daquelas que possuem scanners corporais”.
Parentes de presos, três mulheres ouvidas pela reportagem contaram, sob a condição de anonimato, que, a cada visita, elas ficam nuas e têm de se agachar três vezes de frente e de costas. Elas afirmaram que não reclamam porque temem que os familaires detidos sofram retaliações.
A apuração das denúncias foi iniciada em agosto de 2014. Apesar dos indícios coletados desde então, em queixas feitas à promotoria e visitas feitas a unidades prisionais por integrantes do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública, a SAP (Secretaria da Administração Penitenciária) não reconhece que a revista íntima seja mantida. Mas justifica que, para poder identificar se visitantes levam objetos ilícitos dentro do corpo, seria necessário instalar scanners corporais (equipamentos de varredura visual detalhada) nas unidades prisionais.
Segundo a secretaria, esses aparelhos têm alto valor de mercado, ao custo de R$ 18 mil mensais cada, valor que o Estado não teria como arcar.
Em parceria com o Núcleo Especializado de Situação Carcerária, o Ministério Público pediu à Corregedoria Geral da Justiça no meio do ano passado que determinasse a todos os juízes corregedores de unidades prisionais que reconhecessem “a autoaplicação da lei e sua preponderância sobre qualquer medida normativa do Poder Executivo”, proibindo a realização de revista íntima em todos os estabelecimentos prisionais do Estado.
A corregedoria tenta, há cinco meses, esclarecer a situação com a SAP. Ofícios foram enviados à secretaria desde agosto de 2016, e até a segunda semana de janeiro de 2017 não havia retorno por parte do governo do Estado.
A reportagem do UOL fez três tentativas de obter da Secretaria da Administração Penitenciária esclarecimentos específicos sobre a imposição de desnudamento e agachamentos a visitantes, mas não teve resposta exata para este questionamento.
A secretaria informou, sem citar o termo “íntima” (como está na lei), que “a revista em visitantes de presos é rigorosa, no entanto, não é constrangedora nem vexatória”. Conforme mensagem enviada à reportagem, a secretaria afirma que “o rigor na revista se faz necessário, com o objetivo de evitar a entrada de drogas e celulares nas prisões, ocultados em seus próprios corpos (partes íntimas). Informamos que todos os finais de semana ocorre a prisão de visitantes, que tentam introduzir drogas nos presídios.”
Também não houve posicionamento da SAP sobre as afirmações dos promotores de Justiça e defensores públicos quanto ao não cumprimento da lei em todo o Estado, assim como não houve resposta sobre o motivo de a SAP ainda não ter respondido à Corregedoria Geral de Justiça.
O que diz a lei
A lei 15.552 foi publicada no “Diário Oficial” há quase dois anos e meio, em 13 de agosto de 2014, e “proíbe a revista íntima dos visitantes nos estabelecimentos prisionais” de São Paulo.
Conforme publicado em seu texto, é considerado revista íntima “todo procedimento que obrigue o visitante a despir-se; fazer agachamentos ou dar saltos; submeter-se a exames clínicos invasivos”.
Também fica determinado que todo visitante será submetido à revista mecânica, “por meio da utilização de equipamentos capazes de garantir segurança ao estabelecimento prisional, tais como: ‘scanners’ corporais; detectores de metais; aparelhos de raio-X; outras tecnologias que preservem a integridade física, psicológica e moral do visitante revistado”.
Durante a revista nos aparelhos, se houver suspeita de que o visitante esteja portando objetos ou substâncias ilícitas, deve ser feita uma nova revista, de preferência com equipamento diferente. Se a suspeita persistir, o visitante poderá ser barrado. Caso ainda insista na visita, será encaminhado a um ambulatório onde um médico realizará os procedimentos adequados para averiguar a suspeita.
Se o visitante for flagrado com objetos ilícitos, “será encaminhado à delegacia de polícia para as providências cabíveis”.
Como previsto no artigo 6º, “as despesas resultantes da execução desta lei correrão à conta de dotações orçamentárias próprias”.
O prazo para a regulamentação da lei era de 180 dias a partir de sua publicação e venceu em fevereiro de 2015.
O que a investigação constata
A Promotoria de Justiça de Direitos Humanos começou a receber, em agosto de 2014, queixas sobre humilhações praticadas em unidades prisionais como a de Franco da Rocha (na Grande São Paulo). Também chamou a atenção dos promotores uma denúncia citada em reportagem da “Folha de S.Paulo” sobre abusos sofridos por visitantes de presos.
Os primeiros relatos tratavam de casos ocorridos antes da sanção da lei pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB), mas novos exemplos surgiram mesmo depois de a proibição da revista íntima entrar em vigor.
No mês em que a lei foi publicada, alguns presídios na região oeste do Estado resguardaram os visitantes de tirar a roupa e de fazer agachamentos, mas muita gente foi barrada ao passar vestida por detectores de metal, e o contato com os parentes presos não pôde ser feito.
Na época, o governador Alckmin afirmou em entrevista que scanners corporais seriam alugados e que a revista íntima seria abolida quando estes entrassem em operação nos presídios do Estado onde fossem mais necessários.
A promotoria, então, quis saber da SAP (Secretaria da Administração Penitenciária) mais detalhes sobre o uso de scanners prometido pelo governador.
Em janeiro de 2015, a SAP respondeu que os equipamentos disponíveis nos presídios – detectores de metais e raio-X – “são instrumentos destinados a coibir o ingresso de serras, armas, aparelhos de telefonia celular” e também para a “inspeção de materiais trazidos pelos visitantes”. De acordo com a secretaria, estes equipamentos “não apresentam tecnologia capaz de identificar drogas introduzidas nos corpos dos visitantes”.
A SAP afirmou ainda que scanners corporais eram necessários nos estabelecimentos destinados ao cumprimento de pena em regime fechado e que estudos sobre a viabilidade de sua implantação mostravam que não seria possível compra-los, por conta de seu alto valor de manutenção, sendo a locação a alternativa adequada.
R$ 18 mil por equipamento
A solução apresentada pela secretaria no início de 2015 foi gastar R$ 18 mil por mês com cada scanner corporal, em um sistema de aluguel dos equipamentos. Considerando o número de presos na época (218.165) sob sua custódia, seriam necessários, de acordo com a SAP, 189 equipamentos para atender a lei estadual, com despesa de R$ 3,4 milhões ao mês.
“Como os contratos dessa natureza geralmente são firmados por um período mínimo de 30 meses, esta secretaria teria de dispor da importância de R$ 102.060.000,00”, informou ao MP.
A SAP justificou que, em agosto de 2014, enviou ao Ministério da Justiça um pedido de repasse de verbas para poder arcar com o aluguel dos scanners, que foi negado pelo governo federal.
Segundo estudos feitos pela secretaria, cada scanner seria usado para a realização de até 300 visitas, com duração de 40 segundos por pessoa. Sendo assim, seriam necessários de 1 a 3 scanners por unidade prisional.
Em novembro de 2014, um segundo pedido de verbas foi feito ao Ministério da Justiça, desta vez para o aluguel de 54 equipamentos de varredura corporal, num total de cerca de R$ 29 milhões. Conforme a solicitação feita pela SAP, eles seriam instalados em 25 unidades prisionais de regime fechado na região metropolitana de São Paulo, em duas penitenciárias de segurança máxima (nas cidades de Avaré e Presidente Venceslau) e em um centro de readaptação penitenciária em Presidente Bernardes.
A SAP explicou à promotoria que ainda não tinha recebido resposta do governo federal, mas que havia aberto um processo de licitação para a implantação de cinco scanners nos Centros de Detenção Provisória de Pinheiros, na capital.
Inquérito Civil
Após o recebimento pela promotoria de mais relatos sobre o descumprimento da lei, foi instaurado um inquérito civil público em agosto de 2015, e no fim daquele ano, houve uma reunião com representantes da Secretaria da Administração Penitenciária.
A SAP negou a prática de “revista vexatória” (expressão usada nos documentos pela promotoria), informou que seus pedidos de verbas ao governo federal não tinham sido atendidos e que cinco scanners corporais haviam sido instalados nos Centros de Detenção Provisória de Pinheiros, na capital. No entanto, disse que não existia um projeto para a implantação de scanners corporais no restante dos presídios do Estado.
Em 2016, a Promotoria de Justiça de Direitos Humanos reuniu novos indícios de que revistas com desnudamento e agachamentos continuavam em prática. O Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública apresentou casos em, ao menos, estes municípios paulistas: Americana, Taquarituba, Valparaíso, Álvaro de Carvalho, Guarulhos, Dracena, São Bernardo do Campo, Suzano, Franco da Rocha, Piracicaba e São Paulo.
A Pastoral Carcerária também confirmou que recebia denúncias sobre práticas abusivas semelhantes.
Um relatório nacional da Secretaria de Direitos Humanos, da Presidência da República, divulgado no fim de 2016, aponta que “o procedimento de revista íntima ainda ocorre mesmo que possua uma proibição legal” na Penitenciária Feminina de Sant’Ana, na capital.
“Esse procedimento consiste em desnudar-se e agachar-se três vezes de frente, depois três vezes de costas. Informou-se que só é utilizado o espelho [para verificar as partes íntimas] em caso de suspeita ou de denúncia”, descreve o relatório, que sugere à direção da unidade prisional que “adote de imediato a lei estadual que põe fim à revista íntima aos visitantes e que resulta numa prática vexatória e violadora de direitos humanos”.
Orientação geral a juízes corregedores
Em ação conjunta com o Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública, a promotoria encaminhou à Corregedoria Geral de Justiça um pedido para que determinasse a todos os juízes corregedores de unidades prisionais do Estado que reconhecessem que a lei deve ser aplicada automaticamente e que predomina sobre qualquer medida normativa do Poder Executivo.
O documento afirma que a realização da revista vexatória (expressão usada no texto) é confirmada “por todas as direções de unidades prisionais do Estado de São Paulo, com exceção daquelas que possuem scanners corporais (Centros de Detenção Provisória de Pinheiros e Penitenciária 2 de Presidente Venceslau) e daquelas em que foi concedida ordem judicial para cessação da prática ilegal (Penitenciárias 1 e 2 de Itirapina e Penitenciária de Dracena)”.
Entre outubro de 2014 e maio de 2016, defensores públicos visitaram os 41 Centros de Detenção Provisória do Estado, cerca de metade das unidades prisionais femininas e ainda diversas outras masculinas, onde “foi possível confirmar que a revista vexatória é prática disseminada em todas as unidades prisionais paulistas”.
De acordo com o inquérito civil em curso no Ministério Público, a SAP ainda não respondeu aos pedidos de informações feitos pela corregedoria a partir de agosto de 2016.
Decisões na Justiça a favor da lei
Pelo menos em duas regiões do Estado de São Paulo a Justiça já autorizou visitantes a ingressarem em presídios sem passar pelo procedimento de tirar a roupa e agachar repetidas vezes.
Em Tupi Paulista (680 km da capital), uma mulher, parente de um preso, denunciou humilhações à Defensoria Pública e conseguiu autorização da Corregedoria Geral da Justiça para fazer a visita sem passar por revista íntima, em outubro de 2016.
Na região de Rio Claro (190 km da capital), a Defensoria Pública conseguiu cinco mandados de segurança individuais, no primeiro semestre de 2015, para que parentes de presos fossem liberados da revista íntima.
Em junho de 2015, a Justiça concordou com uma ação civil pública movida pela defensoria e liberou da revista íntima todos os visitantes das Penitenciárias 1 e 2 de Itirapina.
Autor da ação, o defensor público Vinícius da Paz Leite diz que a lei 15.552 não condiciona o fim da revista íntima à compra de equipamentos.
“A Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo deveria unificar esse entendimento em nível estadual, responsabilizar o Estado e determinar que cessem as revistas vexatórias em todos os presídios, esse é o ideal”, afirma.
A SAP não respondeu aos pedidos da reportagem por comentários sobre a viabilidade de abolir revistas íntimas sem a utilização de scanners corporais nem sobre a condição de eliminar a revista íntima com a compra desses aparelhos.