EL PAÍS começa na Turquia uma série de reportagens sobre violência machista
(El País, 21/11/2016 – acesse no site de origem)
Mesmo que a mulher seja menor de idade, se tiver havido cerimônia religiosa, não será estupro. É o que subjaz à proposta do Governo islâmico da Turquia, que pretende adiar indefinidamente as penas de prisão para os homens que tiverem mantido relações sexuais com adolescentes após se casarem com elas em cerimônia religiosa – que também não seria legal porque a cerimônia civil, única válida na Turquia, não é permitida para menores de 17 anos. A iniciativa dos islâmicos do Partido da Justiça e Desenvolvimento (no Governo), que será debatida no Parlamento nesta terça-feira, causou uma grande polêmica no país, onde gerou mobilizações. O casamento infantil é uma das formas de violência contra a mulher, segundo a ONU, que já manifestou preocupação com a reforma, pois existe grande risco de que esses casamentos sejam forçados ou que as menores consintam sob pressão da família.
O primeiro-ministro Binali Yildirim defendeu a medida alegando que, na Turquia, há 3.000 casos de famílias que, “por não conhecer a lei”, casam seus filhos até mesmo menores de 16 anos. “Depois têm filhos, o pai é preso e os filhos ficam sozinhos com a mãe”, disse. O Governo afirma que só serão anistiados aqueles que tiverem mantido relações consensuais com as menores, “sem que haja coação ou ameaças”. A anistia seria aplicada uma vez e de maneira retroativa aos condenados antes de 16 de novembro.
A oposição social-democrata e as organizações de direitos da mulher consideram que a proposta significa a volta, dissimulada, de uma disposição legal que os próprios islâmicos suprimiram em 2005 e que permitia a um estuprador escapar da condenação se desposasse a vítima. A lei “incentiva os casamentos forçados e legaliza o casamento com estupradores”, afirmou Ömer Suha Aldan, deputado pelo partido CHP, na oposição.
Retrocesso social
Segundo a agência das Nações Unidas para a Infância (Unicef), 5% dos turcos chegam casados aos 18 anos e, em muitos casos, são as famílias que decidem essas uniões, especialmente na zona rural. A Associação Mulheres e Democracia (KADEM) questiona como será avaliada, segundo a nova lei, a “vontade” de uma menor ou a “ausência de coação” nos casos de casamento forçado ou sexo com menores.
A Turquia vive dois processos aparentemente contraditórios: por um lado, a legislação contra os maus-tratos endureceu, graças à luta das organizações feministas e também das próprias islâmicos no seio do partido de Governo, mas, por outro, a sociedade se tornou cada vez mais conservadora e perigosa para as mulheres. “Quando o presidente (Recep Tayyip Erdogan) diz não acreditar na igualdade entre homens e mulheres, ou quando outros membros do governo dizem como as mulheres devem se vestir, rir ou se comportar, ele as está colocando em uma posição de subordinação em relação ao homem e fomentando as agressões”, afirma a advogada Hülya Gülbahar. Cita como exemplo um caso divulgado recente em que um homem agrediu uma jovem em um ônibus por vestir calças curtas e o primeiro-ministro Yildirim, em vez de criticar o incidente, disse que o homem deveria “apenas” repreender, mas não agredir. O juiz deixou o agressor livre por considerar que não estava em seu perfeito juízo. “Muitas mulheres começaram a renunciar a suas liberdades por medo”, denuncia Gülbahar.
Nos últimos anos, os tribunais turcos ditaram sentenças polêmicas que absolviam ou reduziam muito a pena dos agressores. Em 13 dos 26 julgamentos por homicídios machistas sentenciados no primeiro semestre de 2015, houve reduções de condenação por “bom comportamento”, “arrependimento” ou “provocação” por parte da vítima, seja pelo “modo de vestir” ou porque “pôs chifres” no agressor.
Andrés Mourenza