Numa noite de 2014, enquanto voltava da faculdade, Lais*, 25, foi abordada por dois homens. “Eu me lembro dos risos, do quanto me causaram medo mesmo antes de me chamar. E a pergunta: ‘Você é homem ou mulher? Segura ela aí que eu vou conferir”.
(UOL, 02/11/2017 – acesse no site de origem)
Ela é lésbica e foi estuprada pelos dois, que diziam: “Toma, mulher macho”. “Fui estuprada por ser lésbica e estar caracterizada enquanto lésbica”, diz. O que Lais sofreu é conhecido como estupro corretivo: um crime que atinge mulheres lésbicas, bissexuais e homens trans, no qual o abusador quer “corrigir” a orientação sexual ou o gênero da vítima
“Vai aprender a gostar de homem”
Apesar de se tratar de uma violência sexual contra a mulher, o estupro corretivo traz peculiaridades que o diferenciam do estupro contra mulheres presumidas como heterossexuais. “Há nele um requinte de machismo associado à lesbofobia, o que traz uma enorme crueldade.”, explica Irina Karla Bacci, mestre em direitos humanos e cidadania pela Universidade de Brasília, ex-ouvidora do Ministério de Direitos Humanos.
O crime une o abuso do corpo da mulher com o preconceito que parte da ideia de que é possível se mudar a orientação sexual da lésbica. “Os pais e homens, como um todo, entendem que podem fazer esse tipo de crime, para corrigir a orientação da mulher”, diz a especialista.
Segundo ela, nesses crimes, os abusadores agem com mais violência, por considerarem a mulher mais frágil, mas, por ser lésbica, merecer “sofrer como um homem”. É comum também a pregação, com frases como “vai aprender a gostar de homem” ou “agora você vira mulher de verdade”.
Elas não se sentem confortáveis para denunciar
Os dados sobre esse tipo de crime são poucos e restritos. O Ministério de Direitos Humanos, por exemplo, recebeu, através do Disque 100, 19 denúncias de abuso sexual e oito de estupro em 2016, mas os números divulgados não especificam quem foram as vítimas dos crimes sexuais. Além disso, existe um problema de pouca notificação quando os crimes acontecem.
“A realidade, provavelmente, é pior do que o que é reportado. Mas nós sabemos que quando se trata de violência contra a mulher lésbica o que predomina é o estupro, seguido da violência física, que pode chegar a ser fatal”, diz a diretora de Promoção dos Direitos LGBT do Ministério de Direitos Humanos, Mariana Reidel. Ela cita o medo de se expor e de ser mal atendida como os principais motivos que levam as mulheres a desistirem da denúncia.
Irina Bacci complementa dizendo que, nos boletins de ocorrência, a orientação sexual não é informada. “Em uma sociedade que entende que toda mulher se relaciona com homens, a mulher lésbica se torna invisível”.
O problema disso, para ela, é que dificulta a prevenção e o combate aos crimes. Mariana Reidel afirmou que o Ministério está reunindo dados de diferentes plataformas, como o disque 180 e o SUS, para trabalhar a questão.
Outra informação alarmante que Irina cita é o crescimento de sites que incentivam o crime. “Esses links ensinam o estupro corretivo de mulheres, estimulando que aconteça em faculdades ou regiões frequentadas por lésbicas”, diz ela.
Depressão e medo
Ciente de que isso acontece e da falta de dados oficiais, a estudante de serviço social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Milena Carneiro, 23, decidiu fazer uma pesquisa por conta. Através do projeto Lesbocídio, que conta histórias e levanta dados de violência contra a mulher lésbica, ela pretende obter um panorama mais real do que acontece.
“O estudo ainda está em andamento, mas, dos 40 formulários que já analisei, pude ver que em metade dos casos de violência contra lésbicas acontece violência sexual. Essa coisa do homem que quer enquadrar a mulher no modelo sexual, fazer ela ‘virar mulher de verdade'”, diz ela.
Seu levantamento também mostrou que as consequências para as vítimas são muitas. “Elas acabam desenvolvendo algum quadro depressivo, medo de sair na rua. E não contam com apoio do estado para lidar com isso”.
Recuperação difícil
Lais, por exemplo, optou por não procurar a polícia depois do que viveu. “Sabia que o atendimento seria outra agressão”. Decidiu lidar sozinha com o trauma.
“Entre um diagnóstico de depressão severa e transtorno de ansiedade generalizada e a incapacidade subsequente de sair da cama, além de pesadelos recorrentes e insuportáveis, tranquei a faculdade, voltei para a casa de meus pais, e entrei em reclusão, sob tratamento psiquiátrico, na tentativa de me recuperar”, diz ela.
Com tratamento e escrevendo muito sobre o que viveu, reconheceu outros abusos do passado e começou a se curar. “Consegui me abrir mais e fui diagnosticada propriamente. Eu estava há anos sendo tratada por ansiedade e depressão, mas ambos eram provenientes do transtorno de estresse pós-traumático”.
Hoje, ela se vê fortalecida. “Irônico é que desse fundo do poço, dessa dor no peito tão forte que me tirava o ar, minha mente tirou a sensação que eu tanto procurava: de que tudo poderia ficar bem”.
A solução estaria na educação
Atualmente, o Ministério de Direitos Humanos não conta com uma ação específica para lidar com a questão. “A gente tenta construir uma política unificada, mas pensando em respeito a esses recortes”, diz Mariana Reidel.
Mas para Irina Bacci, para lidar com os estupros corretivos, o primeiro passo é o Estado entender que as mulheres, são, de fato, uma parte da população e que existem mulheres lésbicas que sofrem violências únicas por isso.
“Se o Estado não reconhecer, não vai enfrentar. É preciso ter uma posição firme, por meio de educação e campanha. Quando se nega o debate de gênero, orientação sexual e sexualidade como um todo dentro das escolas, acaba legitimando o discurso de ódio que vem ganhando cada vez mais espaço e é a base para esse tipo de violência”.
*A entrevistada pediu que sua identidade fosse preservada
Helena Bertho