Baleada por um ex-namorado, ela descobriu uma voz capaz de acabar com o medo e o silenciamento: “Hoje meu trabalho é esse: falar. Fazer de tanto sofrimento uma luta”.
(HuffPost Brasil, 17/05/2018 – acesse no site de origem)
Elisandra Carolina dos Santos foi baleada nas costas pelo ex-namorado quando tinha 17 anos. Ficou paraplégica. Largou a escola. Calou-se. Só aos 30, descobriu o poder da sua voz. “Hoje eu falo muito porque fiquei em silêncio 13 anos”, diz ela, que tem hoje 36 anos.
E seu caminho como ativista começou com um gesto simples, mas revolucionário. Carol, como gosta de ser chamada, descobriu o Coletivo Feminino Plural há cinco anos, durante um flashmob em Porto Alegre. No ato, todas deitavam no chão – menos ela, que da sua cadeira de rodas se dobrou toda para encostar uma mão no solo, em um gesto que a conectou para sempre com o movimento. “Eu tive acolhimento dessas mulheres. Precisava me sentir protegida”, conta. Era a força de que precisava para contar sua história. “Hoje meu trabalho é esse: falar. Fazer de tanto sofrimento uma luta”.
“Meu trabalho é falar. Fazer de tanto sofrimento uma luta. Se eu não falasse, não seria quem eu sou hoje.”
Então estudante, Carol foi alvejada em uma manhã de domingo por um rapaz de 15 anos, seu ex-namorado. Tinham ficado juntos por nove meses. “Ele controlava minha roupa, minha pintura, me levava e me buscava na parada de ônibus todos os dias, mas naquela época, eu não entendia os sinais. Achava que era carinho, atenção”, conta.
Até que Carol terminou o relacionamento sufocante para ficar com um colega de aula. Apenas três dias depois de assumir o novo namoro, o ex-namorado apareceu na casa dela e baleou os dois. O namorado atual morreu na hora. Carol foi socorrida e levada para o hospital, onde ficou no mesmo quarto que seu agressor por dois dias, até que ele morreu em decorrência do tiro que deu na própria cabeça.
“Quanto tu me enxergas, não tens que ver a cadeira, tem de ver a mim.”
Ela saiu de lá 15 dias depois, com uma meta complexa: recomeçar. “Levei cinco anos para sair de casa sozinha. Tinha medo do mundo, medo de empurrar minha cadeira, medo de não conseguir empurrar”. Na primeira vez que enfrentou as ruas sobre rodas sem apoio de ninguém, foi para procurar uma escola. A duras penas, conseguiu terminar o ensino médio em um colégio que não era adaptado e enfrentando uma incontinência severa decorrente da paralisia. Foi graças à monitora da escola estadual Inácio Montanha, dona Gelci, que a amparava nos momento de crise, que Carol conseguiu vencer aqueles três anos.
Hoje, ela é mãe de um menino de cinco anos, Júlio Roberth, cuja gestação inflamou ainda mais seu ativismo. “Cada vez que o bebê mexia, o que é uma coisa tão gostosa para as outras mulheres, eu sentia muita dor. Às vezes, chegava a gritar”, lembra. Mesmo assim, com uma barriga de seis meses, estava empurrando a cadeira na Marcha das Vadias.
“Hoje me sinto uma referência de voz na luta da violência contra as mulheres. E como vou falar, chorando? Enfraquecida? Não. Tem que ser com firmeza.”
A gravidez e o parto normal contrariaram o padrão para uma cadeirante. O problema é que, por isso, Carol virou caso de estudo no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, e a acolhida não foi bem como ela esperava. “No primeiro pré-natal, fui tocada por cinco pessoas diferentes”. Nas 12 horas de trabalho de parto, a mãe paraplégica foi atração para médicos e residentes. “Meu parto só faltou virar filme, todo mundo no hospital foi olhar”, conta. Menos o pai de Júlio Roberth, que é deficiente visual. Mas Carol convenceu a equipe do hospital a deixar que a doula permanecesse na sala de parto, e, assim, narrar para Hélio o nascimento.
Carol e Hélio namoram há anos, mas nunca moraram juntos. Ela sempre cuidou de Júlio Roberth sozinha. “A única coisa em que precisei de ajuda foi para dar banho no nenê. Aí vinha o pessoal do posto de saúde, a comadre, e me ajudavam”. Carol colocava Júlio Roberth no colo e saía empurrando a cadeira com uma mão só. Hoje, dá carona ao filho a bordo da Penélope, sua cadeira de rodas elétrica.
“O movimento de pessoas com deficiência não trabalha com recorte de gênero. As minhas necessidades são diferentes das de um homem com deficiência, o acesso que eu preciso em um posto de saúde não é igual.”
Não há mais medo, mas sair de casa ainda é uma aventura: primeiro, é preciso esperar passar um ônibus adaptado; torcer para que as vagas de cadeirantes não todas estejam ocupadas; e ainda, que o cinto de segurança funcione. Isso quando consegue sair de casa, pois, na rua onde mora, não há calçadas, e com chuva fica tudo alagado. Faixa de segurança também não há, e simplesmente atravessar a rua é um desafio. Mas ela não se priva de reclamar. “Na prefeitura, todo mundo sabe quem é Carol, porque já fiz muito tumulto. Por onde eu passo e me sinto impedida [de transitar], eu me manifesto, reclamo, registro protocolo.”
“Por onde eu passo e me sinto impedida [de transitar], eu me manifesto, reclamo, registro protocolo.”
Além de participar do Coletivo, Carol é membro do grupo Inclusivass, que reúne mulheres portadoras de deficiência. A meta delas é mostrar que mulheres e homens portadores de deficiência têm necessidades diferentes. No posto de saúde, elas precisam de estrutura específica para atendimento ginecológico, por exemplo. Na delegacia da mulher, deveria haver estrutura para uma surda poder denunciar um estupro sem ter de marcar hora com um intérprete de libras. Carol sabe que a estrada é longa, e ainda carece de um simples calçamento onde sua Penélope possa rodar. Mas ela não vai se calar mais.
Ficha Técnica #TodoDiaDelas
Texto: Isabel Marchezan
Imagem: Caroline Bicocchi
Edição: Andréa Martinelli
Figurino: C&A
Realização: RYOT Studio Brasil e CUBOCC
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