As dez mulheres que vieram a público denunciar que foram assediadas sexualmente por Donald Trump abriram uma comporta que iniciou uma verdadeira enxurrada, com revelações pessoais de abusos cometidos por famosos e não famosos, levando comentaristas e colunistas a perguntar:
“Será que agora mais mulheres vão acreditar em suas próprias histórias?”
(HuffPost Brasil, 17/11/2016 – acesse o site de origem)
A possibilidade de denunciar o assédio sexual sofrido é importante e já deveria existir há muito tempo, mas minha dúvida é outra. O que eu pergunto, em vez disso, é: “Diante de tanta atenção crítica voltada a seu comportamento, será que os homens agora vão mudar seu modo de agir?”
Porque, em última análise, é isso que é realmente necessário para que as coisas mudem.
Muitas de nós que chegamos à maioridade nos anos 1960, 1970 e 1980 – mesmo aquelas de nós que estivemos entre as primeiras feministas – obedecíamos um “código de silêncio” em nossas vidas; raramente contávamos para ninguém, exceto nossas amigas mais íntimas, os casos de assédio sexual indesejado que sofríamos.
Por vergonha? Talvez, mas provavelmente, em igual medida, por medo dos homens – especialmente dos homens em posições de poder, que, segundo o que eu pude constatar em minha vida, pareciam ser os que mais frequentemente cometiam essas ofensas.
O chefe no restaurante que põe a mão no seu seio quando você passa por ele em um corredor estreito. O “tio” favorito que se despede de você com um abraço que é tudo, menos próprio de um familiar seu.
O político ou diretor ou produtor de cinema que chama você para falar de uma possibilidade de emprego – um emprego pelo qual você poderia se interessar, até descobrir o preço que terá que pagar por ele. O homem no assento ao seu lado num avião ou trem que agarra você e (em um incidente que, para mim, foi o mais assustador de todos) enfia um lança-perfume em seu nariz enquanto usa a outra mão para apalpar seu corpo.
Essas são coisas vividas por mulheres, com certeza. Mas é um problema dos homens também.
Não é questão de como nos vestimos. Quando eu era uma mulher jovem e queria ser levada a sério, quase sempre (menos quando trabalhava como garçonete e queria gorjetas boas) usava calças com blusas de gola rolê ou camisas de gola alta -mas nada disso me protegia de apalpadas e comentários indesejados.
Um fato mais pertinente e convincente é que, quando caminho pelas ruas do Cairo hoje – cidade onde, em minha juventude, as mulheres geralmente trajavam jeans ou saias quase idênticas às das mulheres ocidentais, exceto por suas cores fortes –, fico em choque.
Em choque ao ver as mulheres hoje usando lenços de cabeça, hijab, véus e vestes que as cobrem dos pés à cabeça, tudo para não “provocar os homens”. No entanto um estudo recente da ONU revelou que nada menos que 82% das mulheres nessa cidade já sofreu assédio sexual e teme ser alvo dele.
Não é questão de como falamos ou do que dizemos. Qualquer defensor de vítimas de estupro é capaz de relatar casos de mulheres tanto desbocadas quanto recatadas sendo vítimas de assédio sexual, agressão sexual e estupro.
Nossas conquistas ou cargos ou status exaltado tampouco nos protegem. O comportamento deferente e a falta de poder convertem mulheres em prováveis futuras vítimas, mas eu, como presidente de minha própria empresa e alguém que rotineiramente tem reuniões com “homens de poder”, já estive em mais de uma reunião em que, em resposta a uma posição adversa de uma mulher forte, os homens à minha volta opinaram que “o que ela precisa é de uma boa tr…..”.
Minhas próprias experiências, além dos relatos de outras amigas que já foram alvos das investidas indesejadas de patrões, políticos, produtores de cinema, ricos e famosos, reforçam o fato de que o fenômeno do assédio sexual – desde comentários até apalpadas, chegando ao estupro – é uma questão não tanto de sexo, mas de poder, privilégio e do senso que alguns homens têm de que esse é um direito que lhes cabe.
Do mesmo modo que há séculos os guerreiros enxergam o corpo das mulheres como prêmio pela vitória, homens poderosos enxergam o acesso ilimitado a corpos femininos como mordomia que decorre de seu sucesso.
Há décadas – na realidade, há vários séculos – as mulheres lutam para se proteger. Adotamos roupas neutras, “assexuadas”; treinamos autodefesa, saímos à noite em grupos, tomamos cuidado ao consumir bebida alcoólica em festas.
Mesmo assim, segundo relatório de 2012 dos Centros de Controle de Doenças, uma em cada cinco mulheres adultas é estuprada em algum momento da vida, uma em cada 20 sofre alguma forma de agressão ou violência sexual, e, segundo o FBI, entre 2001 e 2012 o número de americanas assassinadas por seus companheiros íntimos (11.766) foi quase o dobro do número de mortes americanas no Afeganistão e Iraque (6.488).
Donald Trump Jr., de acordo com reportagem do Huffington Post, disse que as mulheres têm mais é que se acostumar com isso e encarar como normal.
“Se você não consegue lidar com algumas dessas coisas básicas que viraram um problema na força de trabalho hoje, você não tem lugar na força de trabalho”, disse Trump Jr. ao “The Opie and Anthony Show” em uma entrevista de 2013 ao qual o BuzzFeed teve acesso recentemente.
“Se você não consegue lidar com isso, sabe, não tem condições de negociar contratos de bilhões de dólares.”
Eu tenho recomendações diferentes a fazer.
Sempre que estou no Oriente Médio, vendo as mulheres caminhando no calor sufocante usando camadas de roupas sem forma que devem ser quentes como uma fornalha, além de panos cobrindo a cabeça que as colocam em risco quando atravessam a rua, penso que os antolhos colocados em cavalos seriam uma solução muito melhor e mais justa para os homens que são incapazes de controlar seus impulsos.
Como mãe de adolescentes, fiquei horrorizada com os raps sobre estupro que permearam a MTV e as rádios nos anos 1990.
Hesito em falar qualquer coisa contra a liberdade de expressão, mas letras que denigram as mulheres e sugerem que todas nós na realidade só queremos “aquilo” são mais crime de ódio que entretenimento e talvez sejam impróprias para distribuição ampla, do mesmo modo como algumas décadas atrás proibimos a distribuição dos chamados filmes “snuff” (que mostravam cenas de violência e mortes reais).
Quanto ao chamado “papo de vestiário” – como se essa descrição tornasse esse tipo de conversa uma coisa benigna –, é hora de uma mudança cultural. Cabe aos homens, especialmente aos homens em posições de poder, pôr um fim nisso.
Existem homens decentes no mundo. Sou casada com um e conheço muitos outros.
As mulheres são as vítimas maiores da violência sexual, mas, do mesmo como como o racismo não pode ser resolvido apenas com ações dos afro-americanos ou latinos, não cabe apenas a nós acabar com o flagelo da violência sexual.
É hora de as mulheres denunciarem, erguerem sua voz e se manifestarem, mas é também hora de os homens dizerem que o comportamento de Donald Trump e outros homens – desde “papo de vestiário”, bazófias, mentiras até agressões e estupros – é inaceitável.
E, ao mesmo tempo, é hora de eles condenarem tudo isso e se unirem às mulheres em nosso esforço para derrotar a epidemia de ataques legislativos à saúde das mulheres, a seu direito de fazer suas próprias escolhas reprodutivas, a seu direito à contracepção e a seu direito à igualdade salarial, todos fatores que, tanto quanto o assédio sexual, nos impedem de ter igualdade plena.