Forças reacionárias do catolicismo se organizam para recuperar o controle e reverter qualquer sinal de abertura.
O papado de Francisco representou um momento de tensões e ambiguidades na história da Igreja Católica. Foi, sem dúvida, um Papa reformista que buscou aproximar a Igreja do povo, escutando suas dores e denunciando, com coragem, as injustiças sociais.
Primeiro pontífice latino-americano, sua formação pastoral esteve profundamente enraizada em uma teologia que valoriza a fé popular e o compromisso com as pessoas pobres e marginalizadas.
Francisco se destacou ao enfrentar temas incômodos: condenou o capitalismo selvagem e exploratório, defendeu migrantes e imigrantes, criticou os muros – concretos e simbólicos – do racismo e da xenofobia, manifestou solidariedade ao povo palestino, chamou atenção para as crises climáticas e ambientais e costurou diálogos inter-religiosos importantes, além de reconhecer os abusos sexuais cometidos por padres e promover ações para combater essas violências – um assunto, até então, silenciado pela hierarquia católica.
Em um momento histórico marcado pelas guerras, pelos fundamentalismos religiosos e pelo individualismo capitalista, Francisco apostou na construção de uma Igreja ampla e acolhedora, com mensagens explícitas sobre a importância da coletividade – “ninguém se salva sozinho”, chegou a afirmar – e sobre o tipo de fé necessária neste momento civilizatório: “É melhor ser ateu do que um católico hipócrita”.
Contudo, quando olhamos para o papel das mulheres dentro da Igreja, os avanços ainda são tímidos e muito circunscritos ao plano da representatividade. E mesmo esses passos geraram intensa resistência.
A Igreja Católica segue sendo uma das instituições mais patriarcais do mundo ocidental, o que significa que sua estrutura, seus ritos, doutrinas e hierarquia são organizados a partir do poder masculino.
No entanto, sob o papado de Francisco, presenciamos alguns gestos inéditos: pela primeira vez, uma mulher foi nomeada para chefiar um dicastério – o equivalente a um ministério no governo eclesial – e foi permitido que mulheres participassem com direito a voto em assembleias sinodais. Esses atos, embora distantes da igualdade real, romperam com um silêncio de séculos e abriram brechas em estruturas historicamente opressivas.
Embora seus gestos tenham sido tímidos, é importante reconhecer o significado de suas decisões dentro de uma instituição que, por dois milênios, silenciou as mulheres e as excluiu dos espaços de poder. Sem dúvida, o que Francisco fez ainda é insuficiente, mas representa um avanço relevante diante da tradição da própria Igreja Católica.
Em relação à diversidade sexual e de gênero, Francisco demonstrou abertura ao diálogo com pessoas trans, não binárias, gays e lésbicas, adotando um olhar mais acolhedor e inclusivo. Embora tenha tido uma postura condenatória enquanto arcebispo na Argentina, durante seu papado passou a se posicionar de forma distinta, afirmando que todas as pessoas são filhas de Deus e merecem respeito e acolhimento na Igreja. Isso evidencia que Francisco foi uma liderança sensível às vozes do povo e aos clamores de seu tempo, buscando uma Igreja mais próxima e humana. Trata-se de uma postura que contrasta fortemente com a dos setores conservadores, que seguem “demonizando” a comunidade LGBTQIAPN+.
No campo da moral sexual, Francisco manteve posições conservadoras e condenatórias, principalmente em relação ao aborto. Ainda assim, construiu uma narrativa teológica centrada na misericórdia, reconhecendo a complexidade da experiência das mulheres que abortam. Para uma instituição que historicamente criminalizou e silenciou essas mulheres, esse gesto foi, no mínimo, disruptivo.
Católicas pelo Direito de Decidir não apoia a teologia da culpa ou da indulgência, que reforçam a ideia de pecado e o estigma que envolve o aborto, mas reconhece a importância política desse discurso e da orientação do principal líder católico para tantas mulheres de fé que se veem afligidas pela culpa quando necessitam recorrer ao aborto.
Essa mudança de discurso por parte da oficialidade católica também significou um questionamento àqueles setores conservadores que nos julgam quando tomamos decisões sobre nossas vidas reprodutivas com autonomia e acham que têm o poder de definir nossa fé.
Esses avanços no plano discursivo, embora insuficientes para alterar a estrutura milenar católica, geraram grande incômodo nos setores mais conservadores da Igreja, que agora se organizam com o apoio da extrema direita global para influenciar o próximo Conclave. O risco de retrocessos é real. O que está em jogo é a continuidade ou a interrupção da orientação política que Francisco iniciou e que precisa ser aprofundada se quisermos construir uma “casa comum” acolhedora, tal qual ele tanto preconizou.
Forças reacionárias do catolicismo se organizam para recuperar o controle e reverter qualquer sinal de abertura. Não podemos permitir que o destino da Igreja continue sendo decidido por vozes que reproduzem violências estruturais com impactos diretos na vida das mulheres e das populações vulnerabilizadas. É preciso resistir e lutar por uma Igreja verdadeiramente inclusiva.