O rapto das meninas nigerianas e a violência de gênero

10 de maio, 2014

(Opera Mundi, 10/05/2014) Em 14 de abril deste ano, mais de 230 meninas foram sequestradas de uma escola na Nigéria pelo grupo Boko Haram. Elas foram levadas em caminhões no meio da noite, depois de serem convencidas pelos homens, que usavam uniformes militares oficiais, de que estavam sendo na verdade transportadas para um lugar seguro. No meio do caminho, conforme contou uma das que conseguiu escapar ao jornal The Guardian, tiros para o alto e as risadas dos algozes denunciaram o que de fato estava acontecendo: um sequestro em massa.

Semanas se passaram até que a notícia ganhasse apelo entre os grandes veículos de comunicação mundial. Desde o princípio, familiares realizaram protestos contra o governo nigeriano, acusado de não se esforçar o suficiente para encontrar as garotas. Recentemente, as piores notícias sobre o que estava acontecendo com aquelas que foram raptadas começaram a surgir. De acordo com a mesma sobrevivente entrevistada, estupros diários – sendo que algumas meninas seriam violentadas até 15 vezes ao dia –, agressões e todo o tipo de violência eram perpetrados contra elas.

Devido aos detalhes relatados, uma campanha na internet pela libertação das meninas ganhou força. A hashtag #bringbackourgirls se tornou popular e diversos organismos, como a ONU (Organização das Nações Unidas), se manifestaram, pressionando as autoridades nigerianas. Nesta semana, o governo dos Estados Unidos prometeu se empenhar na busca, em parceria com Abuja, inclusive com o uso de drones.

Campanha “Bring Back Our Girls” (Tragam nossas meninas de volta) ganhou força nas últimas semanas na internet. Foto: Efe

E se elas fossem brancas? E se tivessem nascido em uma nação desenvolvida? Teria a comunidade internacional demorado tanto para se mobilizar? Os principais jornais simplesmente publicariam a notícia no pé da página? Claro que não. Basta levar em consideração a cobertura dedicada ao desaparecimento do voo da Malaysia Airlines, ou do naufrágio de um barco com adolescentes sul-coreanos, para encontrar as respostas. A vida de alguns vale mais que a de outros, dependendo de cor e endereço, se aprende rápido no jornalismo.

Os fatores raciais e de classe, o número impressionante de raptadas e a idade delas, certamente tiveram seu peso no aumento da divulgação do caso. No entanto, o enfoque majoritário das notícias inviabiliza um importante debate, que é o da violência de gênero. Basta constatar que o fato de elas serem estupradas diariamente é noticiado com um véu de preconceito e colonialismo. Violentar meninas inocentes é algo típico de culturas tribais e selvagens, principalmente aquelas oriundas desse lugar atrasado, chamado África, pensam muitos. Porém, esse raciocínio não poderia ser mais equivocado.

Praga global

Crimes sexuais contra mulheres e meninas são uma praga global. E se inserem não somente em contextos de guerra deflagrada tradicional, mas também de guerra não convencional. Em ambas, há o uso político da violação: a partir da conquista territorial do corpo feminino, se vence uma trincheira diferente. Além disso, a mensagem de domínio masculino é muito clara e significativa, como a expressada pelo Boko Haram no rapto de abril, mas como também em diversos outros casos de uso sistemático da violência sexual contra mulheres ao longo da história.

 

Manifestantes em Bangalore exigem justiça para o estupro coletivo de uma jovem na Índia, em dezembro de 2012. Ela faleceu. Foto: Wikicommons

Um exemplo é o conflito mexicano, agravado pela ação do narcotráfico. Como aponta a intelectual feminista Rita Segato sobre a pesquisa para o pioneiro ensaio “Território, soberania e crimes de segundo Estado” (2004), onde fala sobre uma onda de feminicídios na mexicana Ciudad Juárez, naquele lugar, o corpo feminino era o “próprio campo de batalha onde se fincavam as bandeiras de controle territorial”. Com o estupro e assassinato de mulheres, “as corporações armadas nas modalidades mafiosas da guerra não convencional”, emitiam signos de suas vitórias, “de sua capacidade de soberania jurisdicional e impunidade”.

Ou seja, não se trata de sexo. Como expressa Segato em outro trabalho, “As estruturas elementares da violência” (2003), quando sublinha que a violência sexual possui “componentes muitos mais expressivos que instrumentais, não perseguem um fim, não querem obter um serviço”. Em vez de ser um simples ato de satisfação sexual, “a agressão ao corpo de uma mulher expressa uma dominação, uma soberania territorial, sobre um território–corpo emblemático”.

Na mesma linha, no livro “Gênero e Poder: violências de gênero em contextos de repressão política e conflitos armados” (2012), a especialista em direitos humanos argentina María Sonderéguer sustenta que “podemos ler nos crimes [sexuais] uma língua que nos interpela”. Citando Segato, ela desenvolve que “quando essa língua escreve sua letra no corpo de uma mulher – ou de um homem – expressa um ato domesticador”, portanto, não se trata de um crime qualquer, mas algo com camadas mais complexas e sensíveis. São as mulheres e crianças os alvos preferenciais por serem compreendidas como propriedade e, assim, expropriadas do próprio corpo em momentos de conflito. São atacadas por serem propriedade a ser conquistada.

Na publicação, Sonderéguer reúne artigos que exploram o avanço da jurisprudência internacional sobre crimes sexuais, com destaque para os julgamentos de agressores da ex-Iugoslávia e Ruanda. Hoje, as violações sistemáticas de mulheres são consideradas como crimes contra os direitos humanos. A intenção do livro é debater o uso da violência sexual por repressores durante a ditadura argentina. Conforme destaca a autora, os depoimentos de argentinas estupradas nos anos de chumbo permitiram que a violência sexual fosse vista “como um crime específico, um delito autônomo diferenciado”.

Desnaturalização

Justamente por isso, deixar de explorar essa problemática é viabilizar mais crimes como os das meninas da Nigéria, cujos destinos se entrelaçam com o das atacadas em campos de concentração nazistas, em prisões de ditaduras latino-americanas e atualmente, na Índia, abalada por diversos casos de estupro coletivo. “As violências de índole sexual contra as mulheres foram possíveis porque continuam outras, já experimentadas, fora do campo de detenção, de violação e de usurpação de direitos”, como alerta Sonderéguer.

Trata-se de uma epidemia mundial, cuja raiz não tem paralelo direto com conflitos armados deflagrados, entre dois lados reconhecidos, como na Nigéria. Exagero? Em reportagem de Opera Mundi, foi lembrado que a cada 27 segundos uma mulher é abusada sexualmente na África do Sul. Uma em cada três sul-africanas será violentada pelo menos uma vez na vida. Um em cada três sul-africanos irá estuprar uma mulher. Há uma guerra na África do Sul? Sim, contra as mulheres, assim como em diversas outras nações ao redor do mundo, neste exato momento. Na luta pela desnaturalização da violência de gênero, nada deve parecer exagerado.

* Marina Terra é editora-chefe de Opera Mundi e membro do coletivo feminista Casa de Lua

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