(Luciana Araújo/Agência Patrícia Galvão, 29/11/2015) Os principais desafios apontados no debate Acesso à informação e autonomia para reivindicar direitos foram: articulação institucional intersetorializada, reconhecimento da importância do protagonismo das mulheres, responsabilização do Estado e enfrentamento ao racismo institucional.
O debate aconteceu dentro do Painel Pequim+20: Acesso integral à justiça para mulheres em situação de violência, realizado no âmbito do projeto Pequim+20, uma parceria do Instituto Patrícia Galvão com a ONU Mulheres e a Fundação Ford.
Assegurar autonomia efetiva
A defensora pública Ana Rita Souza Prata ressaltou que, quando se fala em direito à informação, não se trata apenas de passar a informação à mulher e dar instrumentos de informação a ela. “É preciso pensar também na produção da informação e de conhecimento. É preciso falar em direito à informação como o direito de se informar e de informar”, destacou a defensora, que lembrou ainda que no “sistema de justiça não há representatividade das mulheres negras, das lésbicas, indígenas, migrantes, refugiadas”.
Ana Rita, que é coordenadora auxiliar do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria paulista (Nudem/SP), afirmou que os operadores do sistema de justiça têm que pensar em como atuar para promover efetiva e integralmente os direitos das mulheres em situação de violência, mas isso é dificultado pela relação hierarquizada dos poderes públicos em relação aos cidadãos. “Como conseguimos dar a elas a arma do conhecimento do Direito sem ouvi-las? Justiça não é só acessar o Judiciário. Não é só isso que temos que garantir às mulheres”, declarou a defensora.
A coordenadora de Direitos Humanos do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac), Isabel Santos Mayer, destacou a necessidade de debater como realizar ações mais ousadas para contribuir na organização de mulheres que se articulam para enfrentar a violência. “Tem meninas lutando nas periferias. Há meninas no extremo Sul de São Paulo encontrando o seu jeito de ter autonomia, de comunicar e falar de seus direitos. Nós, enquanto movimentos e poderes públicos, muitas vezes ficamos rígidos nos nossos instrumentos de comunicação e há algumas pessoas que não alcançamos nunca.”
Decifrar o ‘juridiquês’ para as mulheres
A ex-ouvidora e integrante do Grupo Operativo da Ouvidoria da Defensoria Pública do Estado da Bahia, Tânia Palma, ressaltou que “as mulheres não sabem sequer o caminho que a lei faz, e para acreditarem que a lei é importante temos que garantir também a mobilização delas”.
A promotora de justiça Maria Gabriela Manssur, coordenadora do Núcleo de Combate à Violência contra a Mulher do Ministério Público, em Taboão da Serra (SP), defendeu que a mulher seja orientada a usar ferramentas como a internet, para se apoiar na comunidade e se proteger da violência e para obter informações processuais. “É importante também a informação preventiva, informar sobre a Lei Maria da Penha de forma mais aprofundada”, defendeu a promotora, para quem também é preciso informar a mulher que está sendo acompanhada processualmente. “Porque a mulher não sabe quando vai ser a audiência dela, se foi oferecida a denúncia.”
Segundo a promotora Maria Gabriela, depois que a mulher faz o boletim de ocorrência ela não é acompanhada pelos serviços da justiça, do Ministério Público e da Defensoria. “Não se sabe se ela tem ou não a medida protetiva. Acabamos não sabendo se ela está correndo risco, ameaça ou se voltou a sofrer violência”, lamenta a promotora.
Criminalização versus prevenção e mudança cultural
Tânia Palma, que atua também no atendimento a vítimas de violência, ressaltou que é preciso que todo o movimento feminista reivindique a existência dos serviços “para todas nós”, e não apenas para as mulheres das camadas sociais menos favorecidas. “Até porque todas contribuem para a existência dos serviços e só a mobilização de todas pode fazer com que se efetivem os serviços”, destacou a ex-ouvidora.
A defensora Ana Rita lembrou ainda que as respostas prontas apresentadas pelo sistema de justiça às mulheres vítimas de violência são insuficientes para o efetivo fim das violências. E criticou o fato de a criminalização ainda ser a única resposta dada pelo Estado às mulheres vítimas e aos agressores, sem que se realize uma intervenção sobre a cultura de violência contra as mulheres e que se implementem políticas de prevenção e educação para a igualdade de gênero. “Tivemos muitos avanços com a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio, mas não vemos investimentos na prevenção e erradicação dessas violências.” O subfinanciamento das políticas de prevenção já havia sido apontado durante o painel pela representante da ONU Mulheres no Brasil, Nadine Gasman, como um dos maiores desafios para efetivar a igualdade de gênero.
Presidenta da ONG União de Mulheres de São Paulo e integrante do Conselho Consultivo da Ouvidoria da Defensoria paulista, Rute Alonso lembrou que a atual ofensiva conservadora sobre os direitos das mulheres e os direitos sexuais tem buscado inclusive o impedimento legal do debate sobre as desigualdades de gênero.
Ao criticar a prática do sistema de justiça de vincular a expedição de medidas protetivas para a mulher com a realização de boletim de ocorrência, a defensora Ana Rita Prata também fez referência ao retrocesso que está sendo gestado no Legislativo. “Muitas vezes, a mulher não quer registrar um B.O. Agora estamos mobilizadas contra o projeto do [deputado Eduardo] Cunha que obriga as mulheres a fazer boletim de ocorrência em caso de estupro para conseguir realizar um aborto, mas não nos revoltamos da mesma forma sobre obrigarmos a mulher a fazer B.O. para ser acolhida pelo sistema de justiça e a Lei Maria da Penha ser aplicada a ela. Autonomia não é só o direito da mulher de buscar a resposta contra o agressor, mas de buscar a resposta que ela quer”, disse.
Violências institucionais
A promotora Gabriela Manssur falou ainda sobre a morosidade processual gerada pela falta de pessoal e estrutura no sistema de justiça. “As audiências estão sendo designadas para 2018. A mulher fez o boletim de ocorrência, ofereci a denúncia, o juiz recebeu, mas na semana passada tomamos ciência da designação de audiências para 2018. Qual é o acesso que essa mulher está tendo à justiça?”, pergunta a promotora, para quem “acesso é o direito de ter direitos. E a mulher quer o direito de ter o processo criminal. Em 2018 esse crime já prescreveu, ou ela vai mudar de endereço e não vamos mais encontrar essa mulher. Ou seja, vamos perder essa mulher em situação de violência, não vamos saber se ela precisa de proteção ou ver a prisão do autor dos fatos. É uma situação muito ruim porque não se consegue trazer a resposta da justiça”, ressaltou.
Outro problema apontado pela promotora de justiça foi a concentração e a falta de interiorização das estruturas de atendimento. O Gevid (Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica do Ministério Público de São Paulo), por exemplo, “existe só na capital. E no interior, não existe violência contra a mulher?”.
“Temos que convocar o funcionamento das instituições não só nas datas, no Dia dos Direitos Humanos. Porque as instituições são cartesianas. ‘De segunda a sexta, das 8 às 18h’. Aí a pessoa chega às 18 e um e escuta: ‘Ai, senhora, só funciona até às 18h’. E vamos enquadrando tudo em um modelo que não dá respostas”, enfatizou Tânia Palma. A ex-ouvidora da Defensoria baiana também propôs que nos 16 de dias de ativismo pelo fim da violência contra a mulher seja realizada neste ano uma campanha pela abertura ininterrupta das delegacias especializadas de atendimento às mulheres.
Sobre a importância da articulação social para prevenir as violências e assegurar o tratamento humanizado devido à mulher vítima de violência, a promotora Gabriela Manssur relatou a nova recomendação expedida pelo Delegado Geral de Polícia Civil de São Paulo para padronização e aprimoramento do atendimento nas delegacias do Estado em casos de violência contra mulheres, crianças e adolescentes. O documento foi publicado no Diário Oficial no dia 6 de outubro e foi produto do diálogo entre o Ministério Público e a Delegacia Geral de Polícia Civil após audiência pública promovida pelo MPSP para debater o problema do atendimento às mulheres.
Rute Alonso alertou sobre outro tipo de violência institucional: “A política pública vira sinônimo de caridade – ‘o que você veio fazer aqui não é seu direito, vamos te fazer um favorzinho’.”
Leis e direitos das mulheres
A defensora Ana Rita defendeu ainda a necessidade de debater o papel do Estado no novo modelo de informação, no qual a internet, embora seja um espaço que democratiza a produção de conteúdos e o debate, também é um vetor de produção e disseminação de violências racistas, xenófobas, sexistas e de gênero. Ela problematizou o fato de os provedores serem obrigados pelo novo marco civil da internet a preservar informações apenas por um ano em casos de crimes como a chamada “vingança pornô”. “Se a mulher não for rápida e não entrar com a ação nesse prazo, essa informação vai se perder”.
Outra crítica feita pela defensora trata da morte de jovens da periferia, assassinados por integrantes do tráfico ou da polícia, cujas mortes atingem diretamente as mulheres mais violadas: as negras e pobres, mães da maioria dos jovens vitimados.
Ana Rita também ressaltou a importância de reforçar a laicidade do Estado, criticando a criminalização do aborto e a forma preconceituosa como o sistema de justiça recebe mulheres que interromperam gestações indesejadas. “Não podemos aceitar negociar questões que são inegociáveis. E temos um Estado terceirizando serviços para organizações sociais religiosas que se negam a fazer laqueadura nas mulheres e jogam fora as pílulas do dia seguinte recebidas do SUS. O Estado tem que se responsabilizar por esses serviços.”
Responsabilização e reeducação
Tânia Palma defendeu ainda a adoção de penas alternativas focadas na reeducação. “Vai fazer 420 horas de educação de gênero e raça nas escolas públicas. Vai ter que estudar. E a gente vai fiscalizar. Porque não tem cadeia pra todo mundo, e muitas vezes fica por isso mesmo. O crime é crime e o agressor vai cumprir a pena, mas a gente precisa discutir formas alternativas de trabalhar a prevenção das violações e das violências”, ressaltou.
A promotora Gabriela Manssur também defendeu a estruturação de políticas públicas de informação e educação de gênero para os homens. Lembrando que há resistência a esse tipo de trabalho por parte de algumas feministas, que acreditam que os recursos públicos existentes para o trabalho contra a violência doméstica devem ser usados apenas para trabalhar com as mulheres, a promotora fala sobre a importância do trabalho com os homens agressores, que começam a refletir sobre a necessidade de respeitar os direitos das mulheres e não voltam a reincidir. Gabriela coordena o projeto Tempo de Despertar, que inclui entre as medidas de responsabilização pela violência cometida a participação de homens agressores em uma série de palestras sobre gênero e o uso imoderado de álcool e drogas ao longo do cumprimento do processo penal.
Pequim+20 e os desafios futuros
Sob constante pressão e incidência do movimento feminista ao longo das duas últimas décadas, a Plataforma de Pequim tem sido referência para a formulação de leis e a formulação e implementação de políticas públicas no Brasil. “Incontestavelmente houve avanços no país nos últimos 20 anos. Contudo, também se observam desafios significativos e importantes lacunas em diversas áreas prioritárias para a promoção dos direitos das mulheres e eliminação de discriminações e injustiças. É nesse contexto que o projeto Pequim+20, uma parceria do Instituto Patrícia Galvão com a ONU Mulheres e a Fundação Ford, foi concebido e está sendo realizado”, explica Jacira Melo, diretora executiva do Instituto.
A proposta do Painel foi dar um passo além dos diagnósticos sobre violência contra as mulheres. Assim, cada painelista e moderadora foi convidada a pensar, refletir e debater desafios para os próximos 5 a 10 anos. Leia aqui a matéria anterior da série publicada pela Agência Patrícia Galvão sobre o tema.