(Jornal da USP, 28/07/2016) Debate no USP Talks aponta que, enquanto não se desconstruir a cultura do machismo introjetada na sociedade, muito pouco mudará para as mulheres
A violência sexual, física, moral e psicológica contra a mulher é um tema atualmente em evidência na mídia. Vide o caso do estupro coletivo contra uma adolescente no Rio de Janeiro, no final de maio, e a agressão sofrida pela ex-modelo e atriz Luiza Brunet cometida por seu ex-marido, em começo de julho. Exemplos como esses são visíveis, cada vez mais, no cotidiano de todas as classes sociais e ocorrem de forma silenciosa em casa, no trabalho, na rua, no transporte público.
Dados da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR), a partir de balanço dos relatos recebidos pelo Ligue 180 (serviço telefônico de utilidade pública, em âmbito nacional, destinado a atender gratuitamente mulheres em situação de violência), mostram que nos dez primeiros meses de 2015, o Brasil registrou 63.090 denúncias de violência contra a mulher – o que corresponde a um relato a cada sete minutos no País.
Mesmo o Brasil tendo em vigor há dez anos a Lei Maria da Penha, criada para coibir a violência contra as mulheres e uma das mais atuais do mundo, o problema ainda persiste e não se resolve por completo. A taxa de violência é altíssima. Uma em cada três mulheres, na cidade de São Paulo, sofre ou já sofreu violência física ou sexual pelo parceiro.
Para debater sobre essa temática, um dos maiores problemas sociais do Brasil que se manifesta de diversas formas, desde discriminação e assédio no ambiente de trabalho até estupros e outras formas de agressão física e psicológica, a quarta edição do USP Talks, ocorrida dia 27 de julho, na Livraria Cultura, em São Paulo, convidou a professora da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) Ana Flávia d’Oliveira e a promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo Silvia Chakian para falar sobre “Violência contra a mulher: Causas, consequências e responsabilidades”.
Ana Flávia, pesquisadora sobre os temas de violência de gênero, serviços de saúde da mulher e atenção primária no Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP, ressalta que a sociedade brasileira, ao mesmo tempo em que afirma que esse tipo de violência existe, prefere achar que nada acontece e quando acontece acoberta o fato. “O que mais me incomoda é esse jogo entre a visibilidade excessiva na mídia em casos espetaculares e sensacionais e a invisibilidade da violência cotidiana vivida pelas mulheres”, analisa a professora.
Para a pesquisadora, a violência que as mulheres sofrem é como se fosse um fato de segunda categoria, como os serviços de acolhimento também são de segunda categoria. “Veja o caso da Delegacia de Defesa da Mulher, que não é muito valorizada dentro da Secretaria de Segurança Pública, e as varas especiais criminais da violência contra a mulher, relegadas a segundo plano dentro do Poder Judiciário”, observa a pesquisadora.
Outro problema apontado pela professora é o fato das mulheres serem ainda uma ínfima parcela nas lideranças das universidades, das empresas, da política e nos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. “Não é uma representação igualitária e isso mostra como esse tema é banalizado pela sociedade, pelo poder, pelas instituições e pelas pessoas que estão nos cargos decisórios.”
Os estudos realizados por Ana Flávia e equipe mostram o quanto uma mulher violentada tem sua saúde afetada: com muito mais chance de ter depressão, cinco vezes mais chance de se matar, de ter uma gravidez indesejada, de fazer um aborto, ter doenças sexualmente transmissíveis, Aids, além de usar muito mais os serviços de saúde; e uma ínfima chance de ser dona da sua integridade cultural, capaz de atuar na sociedade.
“Violência contra a mulher é questão de cultura”
Silvia Chakian, há 17 anos como promotora de Justiça e sete anos trabalhando de forma exclusiva na violência contra a mulher, defende que essa violência está atrelada às questões culturais de uma sociedade ainda tão patriarcal com expressões machistas.
Para ela, tratar das dificuldades é falar quem são essas mulheres que procuram o Ministério Público, as delegacias e denunciam essa violência. No entanto, um fator preponderante que ainda ocorre em alta frequência é a subnotificação, ou seja, a tendência de as mulheres suportarem em silêncio, por um longo período, a violência dentro de casa até conseguirem pedir ajuda. “Essa não é uma realidade única brasileira, isso se estende a todos os países. As mulheres sofrem vários episódios de violência até que consigam romper com o silêncio”, observa.
A mulher tem dificuldade de se ver como vítima, de culpabilizar o relacionamento abusivo e violento dentro de casa. Ela teme ser incompreendida na justiça, na família. Tem medo e vergonha de expor sua privacidade publicamente e ser desacreditada.
Silvia aponta ainda, como fator complicador, o perfil do autor da violência. “Normalmente, ele tende a gozar de boa reputação social, ser uma pessoa trabalhadora e ter um nível socioeconômico e cultural compatível com o da vítima.”
O autor da violência, na audiência, chega acreditando que não é culpado de nada e nem sabe por que está sendo processado, e diz: ‘doutora, eu não matei, nem roubei, só agredi minha mulher’.
Por isso, Silvia não defende a simples punição como um fator suficiente para a desconstrução da noção deturpada de masculinidade que, muitas vezes, é um comportamento aprendido desde a infância.
Ana Flávia e Silvia acreditam que é preciso mudar a cultura da sociedade, usando efetivamente os estudos já realizados para construção de políticas públicas; treinando os profissionais que aplicam as políticas e atendem nos serviços de acolhimento à violência, como também defendendo sob quaisquer circunstâncias o direito das mulheres.
USP Talks
Organizado pelas Pró-Reitorias de Pesquisa e de Graduação da USP e pelo jornal O Estado de S. Paulo, em parceria com a Livraria Cultura, o USP Talks é uma série mensal que traz especialistas da academia para falar sobre temas de grande relevância, em um formato diferenciado de palestra – informal, simples, rápido e personalizado.
Cada apresentação tem, no máximo, 15 minutos, com 30 minutos de bate-papo com a plateia, ao final. A primeira edição foi em abril, com o tema “Aedes aegypti, zika e microcefalia: Como vencer o mosquito e suas doenças?”, a segunda edição, em maio, trouxe a discussão “Corrupção: De onde vem e como acabar com ela?” e a terceira edição, em junho, abordou “Os mitos e realidades da cura do câncer”.
Para assistir aos próximos encontros, acompanhe a página do USP Talks no Facebook.
Acesse no site de origem: Por que discutir a violência contra a mulher é importante? (Jornal da USP, 28/07/2016)