Neste artigo, as Promotoras de Justiça Cláudia Regina dos Santos Albuquerque Garcia e Luciana Gomes Ferreira de Andrade, do Ministério Público do Estado do Espírito Santo (MPES), e Érica Verícia Canuto de Oliveira Veras, do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte (MPRN), comentam a Lei Federal nº 13.827/2019, recém-sancionada pelo presidente da República e que introduz alterações na Lei Maria da Penha, entre elas, a que permite que delegados e policiais concedam, em situação emergencial, medidas protetivas a mulheres que estejam sendo submetidas a atos de violência doméstica, com o objetivo de afastar o agressor imediatamente de sua convivência.
Leia a seguir alguns trechos selecionados e clique aqui para fazer o download da íntegra do artigo em pdf:
“(…) AUTORIDADES COMPETENTES PARA CONCEDER MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA – MPU
O primeiro ponto que nos chama a atenção na inclusão no artigo 12-C da Lei Maria da Penha é quanto aos legitimados para “aplicação de medida protetiva de urgência à mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou a seus dependentes”, ao estabelecer que tanto a autoridade judicial, como a policial, nesta enquadrado expressamente o cargo de Delegado de Polícia, além de policial, sem estabelecer expressamente qual de suas categorias, poderá aplicar as referidas medidas.
Ou seja, a nova lei, em seu inciso II, inclui a figura do Delegado de Polícia como autoridade competente para aplicar medidas que até então eram exclusivamente concedidas por magistrado. Do mesmo modo, em seu inciso III, esse Art. 2º, traz a hipótese de “policial” também aplicar medida protetiva de urgência, o que nos conduz à interpretação de que poderão estar incluídos escrivães e investigadores de polícia, além de outros integrantes das corporações policiais, sejam eles Policial Federal, Policial Rodoviário ou Ferroviário Federal, Policiais Militares e integrantes do Corpo de bombeiros.
Importante destacar que a discussão pode alcançar ainda as Guardas Municipais, que hoje exercem função essencial no enfrentamento às violências contra as mulheres, notadamente as Patrulhas Maria da Penha e similares. Mas, estariam também as Guardas Municipais, incluídas na Constituição Federal de 1988 como polícia?
(…) Logo, a matéria trará polêmica a ser dirimida pela suprema corte do país, eis que a questão envolve possível invasão de competência atribuída pelo constituinte originário a um determinado Poder. Ou seja, se trata, em tese, de um caso em que lei ordinária, quiçá uma emenda constitucional, não poderia regulamentar de forma diversa de norma hierarquicamente superior.
(…) Não podemos deixar de registrar a ausência de técnica do legislador ao utilizar o termo “denúncia”, quando deveria utilizar os termos como notícia do fato, registro da ocorrência ou requerimento da medida protetiva de urgência, já que a vítima é legitimada para requerê-la. Isso porque, no sistema processual penal brasileiro cabe ao Ministério Público, como titular da ação penal pública, oferecer o que a legislação denomina como denúncia, quando tiver indícios suficientes de autoria e prova da existência do crime. Portanto, o uso desse vocábulo no texto encontra-se equivocado e pode gerar confusão e mais questionamentos.
Questão interessante criada ainda pelo legislador diz respeito à figura da autoridade policial ou do policial que concede MPU restringindo direitos e executa sua própria decisão, ou seja, quando determina o afastamento do ofensor do lar e vai até a residência dar executoriedade à medida. Quem controlará os excessos? Desse panorama nos advém uma nova dúvida: e caso o agressor descumpra a medida protetiva de urgência, quem investigará o descumprimento?
Assim, nesse dispositivo ressurge, mais uma vez, a necessidade de preservar o sistema acusatório estabelecido em nosso país, que consiste na separação das atribuições estatais, na qual quem investiga, não julga, e vice-versa, repelindo concentração de poderes em uma mesma autoridade.
(…) DOS BENEFICIÁRIOS DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA
Além dessas impropriedades e dúvidas que surgem da nova lei, temos ainda críticas quanto ao fato de o legislador ter, em uma lei de proteção para mulheres, ter inserido a possibilidade de concessão de MPU para seus dependentes sem que seja indispensável a existência conjunta da mulher como vítima.
Rememorando o novo texto do Art. 12 da Lei Maria da Penha, “verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida” (grifo nosso), ao analisar a semântica da redação é indubitável que a presença dessa conjunção coordenativa “ou” permitirá pleitos os quais a jurisprudência já consolidou como até então não possíveis.
O texto originário da Lei Maria da Penha sempre estabeleceu que a mulher é a vítima central de proteção, podendo também que a tutela protetiva legal se estendesse aos seus dependentes, até então reconhecidamente incapazes.
Agora, com esse aposto trazendo essa conjunção “ou” indica que a mulher pode não ser tutelada e seus dependentes sim, soando incoerente com tudo o que o sistema de garantias da Lei Maria da Penha estruturou, evidenciando mais uma fragilidade.
(…) COMUNICAÇÃO AO JUIZ
(…) a lei impõe ao Delegado de Polícia e ao policial que comuniquem ao juiz competente as medidas protetivas por eles concedidas.
Assim, uma vez não comunicada a medida no tempo imposto pela lei, defende-se que a tutela concedida não pode perdurar íntegra, restando sua ineficácia absoluta, já que se trata de restrição às garantias dos indivíduos, assim como no caso da prisão em flagrante delito não comunicada oportunamente, tornando-se, em regra, ilegal. No entanto, o magistrado, tomando conhecimento do risco para a vítima e seus dependentes, poderá corrigir a ilegalidade ao decidir fundamentadamente pela concessão de MPU à vítima, garantindo sua proteção integral.
Por essa razão, entende-se que convém à vítima procurar pleitear a tutela de urgência diretamente ao magistrado competente, se prevenindo dos dissabores de eventuais medidas que por ventura sejam classificadas como ilegais e, por consequência, inócuas para sua efetiva proteção.
Ainda entende-se que o § 2º, ao prever que “nos casos de risco à integridade física da ofendida ou à efetividade da medida protetiva de urgência, não será concedida liberdade provisória ao preso”, perdendo uma grande chance, o legislador, em estabelecer a proibição de concessão de fiança, pela autoridade policial, para os casos de violência doméstica e familiar.
(…) CRIAÇÃO DE BANCO DE DADOS DAS MEDIDAS PROTETIVAS
Importante avanço foi a criação de um banco de dados específico para o registro das medidas protetivas de urgência, ao prever o acréscimo do artigo.
(…) Referido cadastro das medidas protetivas de urgência irá facilitar o acesso para outros atores, no interesse da proteção integral da mulher em situação de violência doméstica e familiar, especialmente nos casos em que o juiz de uma comarca defere a medida e o descumprimento acontece noutra comarca. O acesso será imediato e as providências poderão ser adotadas imediatamente. Como também no caso de consulta pelos órgãos da segurança pública, para ter certeza que a medida está em vigor, para fins de configuração do crime de descumprimento e prisão em flagrante do autor da violência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Restam-nos, portanto, os imbróglios jurídicos trazidos pela neófita legislação, os quais a Suprema Corte deverá se debruçar, uma vez que enquanto da elaboração do presente comentário, foi protocolada, coincidentemente, fundamentada na mesma jurisprudência ora apresentada, Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 6138, proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, com pedido cautelar para, imediatamente, suspender a eficácia das modificações introduzidas como o Art. 12-C da Lei Maria da Penha. Espera-se que as mulheres em situação de violência doméstica e familiar não sejam, mais uma vez, revitimizadas, pela celeuma que se avizinha. Mas isso, fica para um próximo artigo.”
Cláudia Regina dos Santos Albuquerque Garcia é promotora de Justiça do Ministério Público do Estado do Espírito Santo – MPES, MPES, Coordenadora Estadual do Núcleo de Enfrentamento às Violências de Gênero em Defesa do Direito das Mulheres –NEVID, Membro colaboradora no CNMP – CDDF/GT6 e Mestra em Segurança Pública.
Érica Verícia Canuto de Oliveira Veras é promotora de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte – MPRN, Doutora em Ciências Sociais. Mestre em Direito e em Ciências Sociais. Membro colaboradora no CNMP – CDDF/GT6. Coordenadora do Núcleo de Atendimento à Mulher Vítima de Violência do MPRN. Professora da UFRN
Luciana Gomes Ferreira de Andrade é promotora de Justiça do Ministério Público do Estado do Espírito Santo – MPES, Secretária-Geral do Gabinete do Procurador-Geral de Justiça do MPES, Supervisora da Assessoria de Gestão Estratégica – AGE do MPES, Especialista em Direito Ambiental Urbanístico, MBA em Gestão Sustentável nas Organizações e Mestra em Segurança Pública.