(Folha de S. Paulo, 25/01/2016) A luta contra o escravismo no Brasil teve momentos de grande arrojo coletivo, como nos quilombos de Palmares, cujas batalhas são comemoradas todos os anos no dia 20 de novembro. Registrou ainda episódios de coragem solitária, nos quais escravos se automutilavam para escapar à opressão.
E conheceu também embates nos tribunais, quando o direito positivo escancarou a aberração escravista na legislação nacional. Vários militantes do direito se incorporaram a essa etapa do abolicionismo, entre eles Luiz Gama (1830-1882), homenageado recentemente pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e pela Universidade Mackenzie.
Reconhecendo a coragem do grande abolicionista negro, a OAB concedeu-lhe o título de advogado. No mesmo movimento, foi anunciada a proposta da inclusão de seu nome na lista de Heróis da Pátria. A homenagem constitui um triunfo tardio e amargo: Luiz Gama morreu sabendo que suas vitórias eram diminutas perante a imensidade de crimes do escravismo.
Gama não chegou a diplomar-se em direito por causa do racismo dominante na Faculdade do Largo de São de Francisco. Mas foi grande combatente nas ações da Justiça que permitiram libertar escravizados.
Escravizados, não escravos. Esse foi o tema crucial de sua militância. Como ele próprio escreveu, sua ação consistia em “promover processos em favor de pessoas livres criminosamente escravizadas”. De que maneira se concretizava a ilegalidade do cativeiro num país em que a escravidão era legal e praticada por toda a escala social, dos mais ricos aos mais pobres dos brasileiros?
Sucede que o alvará de 1818 proibira a entrada de escravos vindos dos portos africanos do norte do Equador. Em seguida, a lei brasileira de 1831 vedou o tráfico de qualquer região da África para o Brasil.
Africanos desembarcados após aquela data eram considerados pessoas livres. Seus supostos proprietários incorriam no crime de sequestro e estavam incursos no artigo 179 do Código Criminal de 1830, que condenava à pena mínima de três anos o ato de “reduzir à escravidão pessoa livre”.
Não obstante a ênfase da lei de 1831, o tráfico prolongou-se, acobertado pelas autoridades, até 1850. Um total de 760 mil africanos foi desembarcado e ilegalmente escravizado no Brasil. A posse ilegal dos senhores sobre esses africanos e seus descendentes foi endossada pela “passividade cúmplice da magistratura e pelo consenso do país”, como escreveu Joaquim Nabuco.
Só no final dos anos 1870, 40 anos após sua entrada em vigor, a aplicação da lei de 1831 começou a ser exigida pelos tribunais. Naquela altura estava claro que a esmagadora maioria dos 1,5 milhão de indivíduos registrados como escravos (15% da população no Censo de 1872) era composta por africanos desembarcados de maneira ilegal e por seus descendentes. Ou seja, por homens, mulheres e crianças inquestionavelmente livres.
Luiz Gama considerava que esse contexto configurava “o cerceamento geral do direito, um atentado nacional”. Apesar de todo o seu empenho, em 1880, dois anos antes de sua morte, ele havia conseguido libertar apenas 500 negros e mulatos sequestrados e escravizados.
Seus companheiros de luta judiciária obtiveram outras centenas de libertações de indivíduos na mesma situação. Porém, a grande maioria dos 15% de cativos da população brasileira permaneceu “criminosamente escravizada” até o dia 13 de maio de 1888.
Luiz Gama perdeu seu combate primordial. E continua perdendo até hoje, porque a sombria significação de sua derrota ainda é largamente ignorada no país.
Luiz Felipe de Alencastro é professor da Escola de Economia de São Paulo da FGV – Fundação Getulio Vargas e professor emérito da Universidade de Paris Sorbonne
Acesse o PDF: A vitória amarga de Luiz Gama, por Luiz Felipe de Alencastro (Folha de S. Paulo, 25/01/2016)