(Folha de S.Paulo, 22/07/2016) Que lugar ocupa um artista negro nessa sociedade do espetáculo construída e usufruída pelos brancos?
“Chocolate”, de Roschdy Zem, apresenta a história do primeiro artista negro de circo na França, o ex-escravo Rafael Padilla (Omar Sy, de “Intocáveis”). Estamos na virada do século 19 para o 20, a chamada Belle Époque.
Ele começa num pequeno circo do norte da França, inicialmente assustando os espectadores, para depois os conquistar com charme, humor e a ajuda de Footit (James Thierrée, neto de Charlie Chaplin), um palhaço branco decadente que o ensinou bastante coisa sobre como fazer rir.
Quando um empresário (Olivier Gourmet) descobre a dupla, eles são levados a Paris e passam a viver a boa vida dos artistas na capital francesa, que àquela altura era a capital do mundo.
Há observações sutis sobre o racismo, até o momento em que, num clipe que mostra a escalada de sucesso da dupla por meio de manchetes de jornais, vemos uma sucessão de referências a “Footit e Chocolate”, e uma delas, a última, estampa “Footit e seu negro”.
Está dado o recado: “Chocolate” vai, sim, falar de racismo. O tempo todo. Num flashback, o pequeno Rafael vê seu pai humilhado por brancos ricos que o compraram.
Inicialmente respeitado nas ruas de Paris pelos dotes cômicos, Chocolate começa a ficar seguro de si, e nada é pior para aflorar o racismo do que um negro que passeia pelas ruas parisienses com um carro chique, roupas nobres e na companhia de uma moça branca (Clotilde Hesme).
Ele é charmoso, simpático e inteligente, mas se não souber o seu lugar, incomoda muita gente. Mesmo numa cidade moderna e multicultural como Paris. Chocolate sofre o diabo por ser negro.
Em outro momento de impacto, ele encontra uma exposição com nativos africanos, e é intimado, numa língua que não entende, por um negro que estava ali, sendo exposto como animal, proibido de ser alimentado pelos espectadores.
Que lugar ocupa Chocolate nessa sociedade do espetáculo construída e usufruída pelos brancos? Eis a pergunta que o filme nos faz.
Claro que ser antirracista não é o bastante. É necessário ser bom cinema. Roschdy Zem, filho de marroquinos e um dos atores de maior prestígio do cinema francês desde os anos 1990, revela-se um diretor consciente do que tinha nas mãos.
Sabe que o importante não é o que se filma, mas como se filma. A força da mise-en-scène amplifica a inquietação. E “Chocolate”, também por ser bem realizado, revela-se um forte filme político.
Sérgio Alpendre
Colaboração para a Folha
Acesse o site de origem: ‘Chocolate’ amplifica inquietação do racismo (Folha de S.Paulo, 22/07/2016)