A recente decisão de um juiz de relaxar a prisão de 18 jovens presos em uma região nobre da cidade de São Paulo antes de uma manifestação contra o governo Temer ganhou bastante repercussão, sobretudo pelo tom forte com que repreendeu a ação da polícia: “O Brasil como Estado Democrático de Direito não pode legitimar a atuação policial de praticar verdadeira ‘prisão para averiguação’ sob o pretexto de que estudantes reunidos poderiam, eventualmente, praticar atos de violência.
(Ponte, 28/09/2016 -acesse no site de origem)
Essa decisão colocou em foco as audiências de custódia, o mecanismo que garantiu que esses jovens detidos tivessem um rápido contato com um juiz, responsável por avaliar a legalidade da prisão, identificar indícios de maus-tratos e ainda decidir se caberia a aplicação de alguma medida cautelar ou de prisão preventiva.
Nesse caso, ficou evidente o quanto as audiências de custódia são um mecanismo importante para o Judiciário controlar a legalidade da atividade policial e poder fazer cessar com rapidez casos de abuso como esse. No entanto, fica a pergunta se o Judiciário é igualmente enfático na defesa do Estado Democrático de Direito em todos os casos de ação ilegal da polícia, nitidamente aqueles em que as pessoas presas não são designadas como estudantes.
Um primeiro caso que ajuda a responder a essa pergunta ocorreu também em São Paulo, apenas um mês antes desse caso dos manifestantes: no dia 5 de agosto, em uma ação supostamente para reprimir o comércio de drogas, 32 pessoas foram presas no centro da capital paulista, depois de uma ação em que a Tropa de Choque cercou ruas e fez uso intenso de bombas de gás e balas de borracha.
A violência ganhou maior repercussão quando uma jornalista da rádio CBN teve seu celular apreendido por dois policiais e as imagens da violência que registrou, apagadas.
Os presos eram, basicamente, pessoas em situação de rua, e a operação repetiu um padrão visto há anos em São Paulo. Sob o argumento de terem sido feitas investigações prévias, a polícia realiza ações truculentas na região da chamada Cracolândia, controlando a circulação no território, aterrorizando as pessoas presentes e realizando prisões em massa.
No entanto, o que acontece na absoluta maioria dos casos é que o discurso da polícia não tem mínima sustentação. Um caso bastante parecido, ocorrido seis anos antes, ilustra esse argumento: em 25 de fevereiro de 2010, em uma das maiores operações já vistas, a polícia abordou cerca de 200 pessoas também na região da Luz e prendeu exatamente 32, que seriam as grandes responsáveis por promover o tráfico na região.
Depois de ficarem mais de 30 dias presas, o Ministério Público optou por não oferecer denúncia contra 31 dessas pessoas, por falta de provas, e a única efetivamente denunciada foi absolvida já na primeira instância.
Em 2010, ainda não eram feitas audiências de custódia e o controle da legalidade, baseado exclusivamente na análise do auto de prisão em flagrante, era extremamente falho e apenas legitimava burocraticamente a ação policial, fazendo com que 32 pessoas permanecessem em um centro de detenção provisória para que depois se constatasse que não havia indícios mínimos que as ligassem ao cometimento do crime alegado.
Seis anos depois, com as audiências de custódia já ocorrendo, uma nova prisão truculenta de 32 pessoas na região da Luz não teve direito a uma rápida e presencial análise de legalidade: como a prisão do dia 5 de agosto ocorreu na manhã de uma sexta-feira, o prazo de 24 horas para a apresentação ao juiz se encerrava no sábado, dia em que não há juízes ou juízas de plantão para analisar presencialmente a legalidade do flagrante.
Para essas pessoas, o Judiciário assumiu o papel de apenas legitimar a atuação da polícia, ao sequer oferecer a mesma possibilidade de acesso à justiça que se deu aos 18 jovens.
Se, de um lado, esse caso mostra a urgência com que é necessário implementar as audiências de custódia em todo Brasil para absolutamente todos os casos de prisão, por outro é preciso levar em consideração que, para a justiça, a legalidade também depende da cor, da renda e da residência das pessoas presas.
Ainda que apresentadas presencialmente a um juiz, continua sendo pouco provável que pessoas acusadas de tráfico na chamada Cracolândia ouçam críticas tão veementes a abusos policiais, mesmo nos casos mais patentes de arbitrariedade. Muito pelo contrário, não só a prisão em flagrante não costuma ser relaxada, como depois de instaurado o processo muitas pessoas são condenadas tendo como única prova a palavra dos policiais.
Esse foi o caso de Desiree Mendes Pinto, presa como traficante em 2011, em outra megaoperação na Luz, sendo que a pouca droga que ela tinha consigo era para consumo pessoal. Seu truculento flagrante foi confirmado e, com base na gravidade abstrata do crime, foi mantida a prisão provisória.
No julgamento, sua sentença foi alta: seis anos de prisão. Entre os motivos para a majoração, o fato de a droga ser crack e a falta de emprego, que provaria que ela se dedica a atividades criminosas. Para os juízes e juízas que julgaram o caso apenas com base no depoimento dos policiais que fizeram o flagrante, desemprego e moradia em uma região pobre da cidade são comprovantes de culpa.
É importante que o caso das prisões arbitrárias no protesto contra o Governo Temer e da detenção em massa na região da Luz em agosto deste ano sejam tomados como paradigmas da importância das audiências de custódia.
Se, de um lado, quando elas ocorrem, abusos podem ser coibidos e a legalidade na atuação policial, controlada; de outro, a certeza de que será possível não apresentar a pessoa presa a um juiz ou juíza cria um cenário propício para que prisões ilegais em massa ocorram.
No entanto, isso não pode sugerir que os problemas da justiça se resumem à realização de uma audiência de custódia: para pessoas negras, pobres e que residem em áreas com alta concentração de pessoas em vulnerabilidade social, é exatamente perante o Judiciário que a violência se constitui e se legitima.
Enquanto juízes e juízas não se atentarem para o caráter discriminatório de diversas teses jurídicas que já são chavões de tão rotineiras (como a falta de emprego fixo para justificar a prisão), a criação de novos espaços de contato entre pessoa acusada e o Judiciário será uma medida absolutamente inócua para combater o encarceramento em massa.
*Raquel da Cruz Lima é advogada, historiadora e coordenadora do Programa Justiça Sem Muros, do Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC).