(CartaCapital, 08/06/2016) As mulheres negras foram violadas sistematicamente no período colonial. E, atualmente, ainda são o grupo o mais violentado
Em um país em que a cada 11 minutos uma mulher é estuprada não se pode tratar essa questão como um tema pontual. O fato de essa violência ser sistemática comprova que existe uma cultura de violência contra a mulher, porque também vivemos em um país em que, a cada cinco minutos, uma mulher é agredida.
Porém, é importante dizer que essa cultura do estupro existe desde o período da escravidão. Mulheres negras escravizadas eram violentadas pelos senhores de escravos e forçadas às mais variadas formas de violências. A filósofa Angela Davis, em Mulher, raça e classe, aborda o fato das mulheres negras não serem tratadas como frágeis e castas, ao contrário, tiveram de realizar trabalhos forçados que precisavam do uso da força.
Davis inicia o livro com o capítulo “Legado da escravatura: bases para uma nova natureza feminina” falando sobre o modo pelo qual a mulher negra escravizada era tratada de modo a ofuscar uma “natureza feminina”, uma vez que elas eram forçadas a desempenhar o mesmo trabalho dos homens negros escravizados.
O que as diferenciavam dos homens, e essa se torna uma diferença crucial, era o fato de terem seus corpos violados pelo estupro. Essa outra construção de feminino irá contrastar diretamente com a qual as mulheres brancas lutarão para derrubar: a da mulher frágil, submissa e dependente do homem. A mulher negra ter sido submetida a esse tipo de violência evidencia uma relação direta entre a colonização e a cultura do estupro.
No Brasil, as mulheres negras tiveram a mesma experiência. Importante ressaltar que a miscigenação tão louvada no País também foi fruto de estupros sistemáticos cometidos contra mulheres negras. Essa tentativa de romantização da miscigenação serve para escamotear a violência.
Mulheres negras escravizadas foram violadas sistematicamente no período colonial. E, atualmente, ainda é esse o grupo o mais violentado, também em caso de violência doméstica. Segundo dados da Unicef na pesquisa Violência Sexual, o perfil das mulheres e meninas exploradas sexualmente aponta para a exclusão social desse grupo.
A maioria é de afrodescendentes, vem de classes populares, tem baixa escolaridade, habita em espaços urbanos periféricos ou em municípios de baixo desenvolvimento socioeconômico. Muitas dessas adolescentes já sofreram inclusive algum tipo de violência (intrafamiliar ou extrafamiliar).
Por mais que todas as mulheres estejam sujeitas a esse tipo de violência, já que é sistemática, se faz importante observar o grupo que está mais suscetível a ela já que seus corpos vêm sendo desumanizados historicamente, ultrassexualizados, vistos como objeto sexual. Esses estereótipos racistas contribuem para a cultura de violência contra essas mulheres, pois elas são vistas como lascivas, “fáceis”, as que não merecem ser tratadas com respeito.
Um exemplo dos estigmas que estão colocados sobre os corpos das mulheres negras é o caso de Vênus Hotentote. Seu nome original é Sarah Baartman. Nascida em 1789 na região da África do Sul, no início do século 19 foi levada para a Europa e exposta em espetáculos públicos, circenses e científicos devido aos seus traços corporais.
Segundo Damasceno (2008), Sarah Baartman deu um corpo à teoria racista. Não importa aonde vamos, a marca é carregada. Mesmo após sua morte, seu corpo seguiu sendo explorado. Partes de seu corpo, incluindo as íntimas, ficaram à exposição do público no Museu do Homem, na França, até 1975. Apenas em 2002, seus restos mortais foram devolvidos à África do Sul a pedido de Nelson Mandela.
Com base nesses fatos históricos podemos dizer que no Brasil há uma relação direta entre colonização e cultura do estupro. E nós precisamos falar sobre isso.
Acesse no site de origem: Cultura do estupro: o que a miscigenação tem a ver com isso?, por Djamila Ribeiro (CartaCapital, 08/06/2016)