Um viva às mulheres negras
(HuffPost Brasil, 24/07/2017 – acesse no site de origem)
Nasci baiana porque esse é o benefício de quem estreia ni Salvador. Em uma cidade de altos e baixos, com curvas e retas que me ensinaram o princípio da união harmônica. Filha de uma relação inter-racial, desde cedo percebia que nem era igual, nem parecida com determinado grupo da família. Assumi o orgulho de ser negra. Se nos ensinam a não gostar, a desvalorizar, a desqualificar, a discriminar, a fugir, a ter medo, enegreci. Compreendi por que ser negra em uma escola de classe média ni Salvador me fazia esconder que adorava brincar nos muros das casas do Uruguai, na Cidade Baixa. Que ir ao Ballet na Pituba me fazia esconder que eu gostava mesmo de me sacudir toda nas Terças da Benção na quadra do Olodum, no Pelourinho. Fiz trancinhas no cabelo. Na Lapinha, assistia ao futebol de botão. N’Itapuã, convivia com o Caruru de Promessa. Sete crianças comiam antes de mim, sempre.
Então, ouvi um jamaicano rastafari cantar: “Emancipate yourselves from mental slavery. None but ourselves can free our minds“. Marx confirmou as músicas de Bob Marley, a alienação enquanto instrumento de controle cooptava a vítima a reproduzir os costumes opressores. “Se você está de ofender, é só chamá-la de morena, pode crê. Aqui no Ilê Aiyê, a preferência é ser chamada de Negona. A consciência é o objetivo principal. Eu quero muito mais, além de esporte e carnaval, natural. Chega de eleger aqueles que têm. Se o poder é muito bom, eu quero o poder também. Se você está de ofender, é só chamá-lo de moreno. É desrespeito à raça, é alienação. Aqui no Ilê Aiyê, a preferência é ser chamado de Negão.” Numa música do Ilê Aiyê, aprendi minha referência bibliográfica mais coerente sobre o poder enquanto categoria de análise.
Na metodologia da universidade, a observação e a interação com o objeto estão inclusos enquanto processo de pesquisa empírica. Pesquiso as desigualdades raciais. As políticas públicas de igualdade racial no Brasil. Geografizando nos territórios usados com Milton Santos. O corpo. Única inapta a desfilar no bloco de carnaval odor agradável do afeto. Minha mãe foi lá tirar satisfação. Minha beleza tem cor. Inserida em mim mesma. Na escada rolante, a moça pediu para o filho guardar o celular. Me deu muitas olhadas. Ninguém atrás de mim. Eu era a ameaça. Não sabia ela que meu celular era aquele da maçã mordida. Meu dinheiro é negro.
Alunos e alunas que éramos da universidade, em nossa pesquisa de campo, abordadas pelos seguranças ali mesmo no estacionamento, ao descer dos carros. Questionaram o que iríamos fazer no shopping. Minha renda tem raça. Nas pesquisas domiciliares do IBGE, usadas como base de nossas análises, as diferenças estão presentes de modo consistente, contínuo e com certeza. Se quiser ver, veja. Lá nos nossos trabalhos para download gratuito. Nem precisaria citar dados estatísticos para confirmar minha lenga-lenga.
A cadeia. O sistema carcerário aprisiona homens pretos e pardos. O cemitério. Os corpos de jovens negros são morridos por morte matada. A cozinha. Minhas colegas empregadas domésticas são trabalhadoras rejeitadas pela própria Constituição Federal do nosso país. Artigo sétimo, parágrafo único. Os direitos delas são menores que de todos os trabalhadores iguais. O lixo. 66% de catadores e catadoras de material reciclável são pretos e pardos, de acordo com pesquisa do Ipea!
Resistimos às questões das desigualdades relacionadas à discriminação racial causada pelo preconceito baseado no racismo. Ni Brasília, durante o Festival Latinidades, a pantera negra Angela Davis desfilou um blackpower grisalho e defendeu os princípios do veganismo. No palco, Dona Conceição Evaristo apresentou a minina Yasmin Thainá. E num é que ela escreveu uma carta aberta para Lázaro Ramos? Pense num mininoseco, pior que eu. Atuava no Bando de Teatro Olodum. Assisti Ó Paí Ó, Cabaré da Raça. No meio do MAM, bati o pé com Tia Nenga me dizendo que era uma trilogia do Pelô: Essa é a Nossa Praia, Ó Paí Ó e Bai Bai Pelô. Então, aceito o convite de Thaís Araújo para subir No Topo da Montanha. Lembro bem do dia que ouvi: “Lá vem a negrada que faz o astral da avenida. Mas que coisa bonita. Quando ela passa, me faz chorar. Tu és o mais belo dos belos, traz paz e riqueza, tens o brilho tão forte, por isso te chamo de Pérola Negra”.
Um viva às mulheres negras!
Fernanda Lira Góes é técnica de planejamento e pesquisa do Ipea