(El País, 25/01/2015) Se fosse pelas trágicas estatísticas do país, o rapper Rico Dalasam teria motivos de sobra para tremer todas as vezes que sai na rua. Negro, pobre, morador de periferia de São Paulo e homossexual, Rico não só caminha de cabeça erguida enquanto parece dançar com os ombros, como também se vale dos preconceitos que o acompanharam a vida inteira para lançar sua carreira musical. “Eu sou mil minorias, e se eu estou vivo dentro das condições que sofre cada uma delas, é porque tenho uma missão. Não sei quanto tempo vai durar, mas vou ser a voz de muita gente sem voz”, conta em uma cervejaria da rua Augusta, nos Jardins. O nome do seu primeiro videoclipe resume o escopo de uma incipiente carreira: Aceite-C. “Outro não dá pra ser, sem crise, sem chance, uma dica: aceite-c”, diz a música.
Nascido há 25 anos em Taboão da Serra, Rico é o caçula de cinco irmãos criados por uma mãe baiana de marido ausente. Rico não bebe, não fuma, nunca provou nenhuma droga e não tem passagem pela polícia. “Minha família entendeu que através do estudo eu conseguiria driblar a curva… Os 13 anos são um momento decisivo, [no tráfico] já tem cargo para você. Fazer cabelo me ajudou a ganhar uma grana. Porque o que te inclui [na sociedade], não são as políticas de integração, é teu tênis e teu Iphone“, diz, hoje graduado em Audiovisual.
Durante a conversa, Rico aponta com dois dedos o rosto do seu interlocutor, mas percebe, sorri e se desculpa pelo tom duro com o que começou a entrevista. “Se olhar a realidade dos negros e dos gays neste país, eu estaria quase morto. Minha narrativa fala sobre isso, mas com alegria, nada de cara feia, sacou?”.
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Já em 2006, quando era apenas um adolescente descobrindo sua sexualidade nos diferentes colégios privados onde estudou graças a bolsas que sua mãe procurava, Rico começou a frequentar as batalhas de MC’s da estação Santa Cruz, palco de Emicida e Projota antes de conquistarem a cena musical. “Isso é o que me garante alguma coisa, eu já estava na cena do rap, tá ligado? É uma cena homofóbica, mas a única coisa que me fortalece é que meu rap não fica atrás do do Criolo ou do Emicida”, afirma.
Como demonstrará durante toda a entrevista, entre suas qualidades para brilhar, além dos versos polêmicos ou sua fotogenia, está uma autoconfiança capaz de injetar no ouvinte uma ideia só: ‘eu já sou uma estrela’. “O principal problema do Brasil é a autoestima da maioria do povo, e quando digo maioria, digo pobre, que está em estado de coma. Imagina se os pretos dissessem: ‘mano, vamos derrubar isto aqui’. Se você põe autoestima em quem está da ponte para lá, se você coloca esse senso de ‘eu sou foda’, você não vai precisar de MPL [Movimento Passe Livre] para liderar protestos, a gente mesmo iria para a rua para liderar tudo isso. Imagina se amanhã nenhum preto for trabalhar, não abre nem este bar aqui. A ideia é injetar isso, que seja incendiário, porque não tem passeata de negro aqui”, reivindica Rico.
Foi fora do que ele chama de seu gueto, “onde todo mundo é pobre e negro”, nos bairros nobres da cidade, onde começou a germinar a semente de reivindicação com a qual hoje escreve suas rimas. “Tinha 11 anos quando saí pela primeira vez do meu bairro e com isso já vieram as primeiras sensações ao ver as senhoras se agarrando as suas bolsas ou mudando de calçada. Eu já ouvia rap, mas eu não entendia porque esses caras eram tão bravos. Comecei a perguntar e comecei a entender de um jeito bem raso a questão da segregação”, lembra. “Entendi por que minha mãe trabalhava onde ela trabalhava, de cozinheira em uma casa onde tinha comida e cama, mas não salário. Eu sempre me perguntava: ‘Poxa, por que minha mãe nunca vem na reunião de escola? Por que ela trabalha tanto? Por que, mesmo assim, ela nunca tem dinheiro? Comecei a entender que a gente era desfavorecido diante dessas outras pessoas aqui”, diz olhando para os clientes do bar.
À revolta somou-se o orgulho que começou a sentir da sua pele, do seu cabelo, da sua origem, assim como a descoberta da sua sexualidade no pátio de um colégio particular rodeado de meninos brancos com mochilas de marca e canetas de cores que ele não podia comprar. Assim o racismo e a desigualdade carregam suas músicas, mas o amor as amolecem. Ele não quer renunciar a falar de sentimentos, mesmo se tratando de rap. Não posso esperar, outra das suas músicas de lançamento, fala sobre os nove anos que Rico demorou em declarar seu amor a um amiguinho da escola branco, feio e com espinhas e que hoje se tornou um “príncipe encantado” com braços de academia. “Do mesmo modo que demorei em estruturar meu orgulho negro, demorei ainda mais com meu orgulho gay. Tudo o que falo sobre amor é sobre ele, embora eu saiba que ele não caberia na minha narrativa agora”.
Rico, que aproveitou sua condição para torná-la uma bela campanha de marketing, esclarece que suas letras não vão ser apenas para poucos. “Quero fazer música para a geral, quero falar do Brasil, quero falar da Bahia, mas agora não tenho como ser popular sem colocar ideias novas para o desdobramento do país. Eu não estou viajando na maionese, eu sei onde vou chegar. A gente quer ter uma relação com o Ministério da Cultura, um papel na defesa dos Direitos Humanos… porque a gente vai continuar sendo minoria enquanto nos cargos formos minoria, enquanto nos mestrados formos minoria… Eu vou defender isso, mas nada de cara fechada, sacou?”.
Maria Martín
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