(Folha de S.Paulo, 13/05/2014) No Brasil do passado, os princípios do moderno mundo das luzes serviram para desumanizar, oprimir e vilipendiar homens, mulheres e crianças negras. Sob o manto da lei, referendado pela ciência, com o silêncio da academia e vista grossa da religião, o país escravizou o maior contingente de negros da história da humanidade.
Por mais de 350 anos, a escravidão e o tráfico negreiro constituíram a essência da economia e da vida nacional, tendo definido a fisionomia, o ethos, bem como promovido os acúmulos econômicos e financeiros públicos e privados que hoje coloca o país entre as dez maiores economias do planeta.
Depois, o compromisso ético e o sentido da justiça em relação aos negros encontraram um Estado e uma sociedade que preferiram o silêncio, realizando sua substituição por imigrantes europeus e promovendo sua exclusão da vida política e social, sem direitos políticos, sem indenização. As distorcidas República e democracia brasileiras concederam a liberdade para os negros com uma mão e os reescravizou num apartheid social com a outra.
No Brasil de hoje, que neste 13 de maio registra o passamento dos 126 anos da abolição da escravatura dos negros, nos encontramos diante de desafios tão grandes e tão urgentes quanto aqueles enfrentados e vencidos pelos nossos antepassados.
A República, a democracia, o Estado democrático de Direito, a Justiça, a igualdade e dignidade da pessoa humana, no mais das vezes, têm sido apenas conceitos formais distantes e em muitos sentidos inalcançáveis aos negros ou pelos negros brasileiros. Essa parcela majoritária da população continua invisível socialmente e distante dos postos de prestígios dos quadros governamentais ou corporativos. Recebe salários inferiores aos dos brancos, não tem representação nem participação na agenda política ou na estrutura dos partidos, inexiste na comunicação social escrita, falada e televisada. A mulher e a estética negra são preteridas e desqualificadas. Os negros são a maioria dos pobres e os jovens negros respondem por 75% das vítimas de homicídio.
No Brasil de hoje, além dos negros pobres, jogadores negros milionários são agredidos racialmente dentro e fora dos estádios. O mais importante jornalista negro e o próprio presidente do Supremo Tribunal Federal, em razão da cor negra da sua pele, são vítimas de crime de racismo, confirmando que a discriminação é estrutural e institucionalizada.
Assim, seja para a real efetivação dos valores universais, seja para combate ao preconceito e discriminação racial, exige-se que o Estado e a sociedade substituam a tradicional neutralidade por uma ação estratégica que induza e produza o combate dessas desigualdades.
As cotas para os negros nas universidades e nos concursos públicos municipais, estaduais e federais são pedras angulares para produzir conhecimento, consciência, tolerância e pertencimento.
O fortalecimento das relações étnico raciais ajudará o país a dar um salto adiante na participação política, econômica e social dos negros, promovendo sua inclusão, diminuindo as desigualdades, democratizando as oportunidades e equilibrando o acesso e fruição desses brasileiros da riqueza da nação.
JOSÉ VICENTE, 54, doutor em educação, é reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares
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