(Opera Mundi, 14/12/2015) A peça dirigida por Lázaro Ramos e escrita por Katori Hall fala na verdade das mulheres negras
Tive a oportunidade de ir neste domingo (13/12) assistir uma sessão muito especial de “O topo da montanha”, desde sua estréia a montagem protagonizada por Lázaro Ramos e Taís Araújo vem sido divulgada como uma peça que retrata e remonta o último dia de Martin Luther King Jr em 1968. A peça está em cartaz desde 9 de outubro no Teatro FAAP, no coração de Higienópolis, e quando fui assistir a platéia era inteira composta por militantes de movimentos sociais e dos direitos humanos – majoritariamente negros e negras. Registro que este post estará recheado de spoillers e pra quem já conseguiu comprar seu ingresso pras últimas sessões de “O topo da montanha” sugiro que pare por aqui e feche essa abinha do seu navegador.
Poderia começar falando o quanto é maravilhoso ver Martin Luther King ser humanizado com todas as suas contradições pelo texto de Katori Hall, o resgate do pensamento de Malcom X ou quanto mesmo sendo uma peça sobre o movimento negro estadunidense ela é perfeitamente atual ao apresentar temas como genocídio da juventude negra e racismo. Isso tudo existe em “O topo da montanha”, mas centralmente a peça não é sobre nenhum desses temas, a montagem é sobre o quanto as mulheres negras são fodas nesse mundo onde a mulher negra ainda é a mula do mundo.
A primeira questão é o quanto Taís Araújo brilha no palco, sua Camae engole o senhor King a cada cena e diálogo da peça. No material produzido para divulgação da peça há um texto de Taís que sintetiza bem o quanto a figura feminina em “O topo da montanha” é de uma profunda centralidade não apenas na montagem, mas também no cotidiano da vida real.
Era difícil parar de pensar nas palavras do reverendo, assim como em todo discurso de Camae, que representa e lembra também outras tantas mulheres precursoras que lutaram bravamente pelos direitos civis, pelas causas humanas. E a possibilidade de dar vida a essa personagem que desafia, contesta e provoca o Dr King, fazendo com que ele reflita sobre o valor da sua luta, foi o que me fez insistir para que Lázaro lesse o texto. Mais tarde, pressionei para que ele assumisse também a direção, sendo enfática ao dizer, docemente, que “ou ele aceitava o desafio ou nosso casamento chegaria ao fim”. Lázaro – por livre e espontânea pressão – encarou a empreitada.(Encontro ao acaso, a força feminina e a fragilidade de um líder)
Camae é a expressão máxima no palco do quanto as mulheres negras ao mesmo tempo cumprem papel fundamental na sociedade e, ao mesmo tempo, são invisibilizadas. “O topo da montanha” pontua justamente isso, Camae não é apenas uma camareira provocando o senhor King e relembrando o debate travado por Malcom X e que foi rechaçado pelo reverendo King, Camae é o anjo que vai falar ao líder do movimento de direitos civis que ele morreria e o retira de seu posto de vaidade e o lembra de que ele subiu após outros também construírem a luta contra o racismo, a pobreza e tantas outras mazelas sociais.
Porém Camae não é a única mulher presente na trama. Hall apresenta em seu texto a figura de deus que é mulher (pra mim e outras amigas que estavam na platéia era na verdade uma mulher trans), preta e com um black enorme. Deus na peça não é apenas uma personagem que surge em um ou outro comentário de Camae ou King, ela é quem lembra a King o quão importante e ao mesmo tempo substituível ele é e o como nós militantes políticos somos humanos, temos medos e somos finitos.
Deus e Camae são duas mulheres negras fortes, radicais e a existência destas duas personagens em “O topo da montanha” só comprova o quanto a peça não é sobre Martin Luther King Jr e o seu último dia antes de ser baleado na sacada do Hotel Lorraine. Essa peça é sobre as mulheres negras, que morrem e ninguém vê, que choram ao ter seus filhos assassinados até hoje pela polícia militar e o poder público ignora o genocídio que persiste. É sobre a nossa marginalização e a nossa invisibilização, mas também é sobre a nossa força, a nossa impertinência e a impetuosidade que temos de questionar e modificar as coisas.
Não há como não rir com as provocações de Camae, mas também não chorar quando ela se joga ao chão e lembra o quanto nosso lugar na sociedade é profundamente invisibilizado (isso por que não estamos falando de mulheres trans e travestis que, como uma amiga e camarada diz, já estão mortas e não existem desde sempre) e o quanto somos mulas nesse mundão.
Sim, nós existimos. Sim, nós subvertemos. Sim, nós provocamos. Sim, não mais seremos as mulas da sociedade.
Acesse no site de origem: “O topo da montanha” não é sobre Luther King, por Luka (Opera Mundi, 14/12/2015)