Quando chego a qualquer lugar, me pergunto mentalmente: ‘quantos pretos?’
(O Globo, 13/09/2017 – acesse no site de origem)
Eu já narrei aqui da minha mania de, entrando em qualquer espaço, contar quantos pretos estão nele? Se não, narro agora: quando chego a qualquer lugar, me pergunto mentalmente: “quantos pretos?”.
Parece uma pergunta boba, mas faz toda a diferença. Especialmente quando a gente começa a frequentar espaços e se ver como o único ou muitas vezes só ter como “par étnico” as pessoas que estão trabalhando, nunca as que estão se divertindo.
Encontrei Átila Roque semana passada, saudosa, festiva. Ainda celebrava a nomeação dele para o cargo de diretor do escritório da Fundação Ford no Brasil. Átila me contou ser o primeiro negro a trabalhar na instituição, claro, fora a moça do cafezinho, o manobrista, o faxineiro.
Das coisas boas de morar em um país como Angola, em que 97% (!!!) da população é negra, é a facilidade de encontrar meus “pares étnicos” em todos os espaços. Mas não se engane, nos bairros mais pobres a porcentagem negra chega facilmente a 100%, e dos tons mais retintos. Mas este é assunto para uma coluna inteira.
Eu já narrei aqui do meu vício em televisão e do quanto eu acho que se aprende da cultura de qualquer lugar vendo TV? Então, qual foi minha surpresa, estando dez dias no Rio e me deparando com a propaganda institucional do Conar, o Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária. A propaganda do órgão, que tem como objetivo regulamentar o setor, criando regras para a realização e veiculação de publicidade, basicamente comparava representação nas campanhas publicitárias e gosto pessoal.
Por exemplo: se você acha que família de comercial de margarina é formada por homem, mulher e filhos você deveria olhar para um lado; se não, e a imagem é a de um casal homoafetivo formado por duas mulheres, é só olhar para o outro.
Ou se você acha que é importante representar etnias diferentes nas propagandas — já que todas as etnias consomem — olhe para um lado. Se você acha que está tudo bem os produtos serem sempre vinculados a pessoas brancas, olhe para o outro.
Tudo isso permeado pela preferência de pão integral ou pão de farinha branca. Ler essa coluna no celular ou no impresso. Goiaba branca ou vermelha.
Mas, falando em cor, tudo para mim estaria muito explicadinho se a agência publicitária ou alguém da direção do Conar fosse uma das meninas que desejaram ser Paquita mas só podiam ser a Bombom. E a Bombom era legal, ela era a mais engraçada, a que dançava funk com a Xuxa, a que fazia caretas, usava as roupas mais curtas. A personagem da Bombom deixava bem explícito qual era o lugar da mulher negra da TV brasileira e na sociedade. Então, se você acha que isso não tem nada a ver, é só olhar para o outro lado.
Mas como essa pessoa existirá, se nas 50 maiores agências de publicidade do país, a cada mil funcionários, 35 são negros, segundo dados do Instituto Etnus.
Ainda nas “cores”, você já reparou na quantidade de ruivos nas propagandas? Os ruivos chegam no máximo a 2% da população mundial mas eles estão tão representados na propaganda que parecem até a maioria. Se você quer ter emprego vitalício seja uma criança ruiva, nunca falta trabalho para elas.
A maior lembrança de viagem que eu tenho é uma lata de leite Ninho. Sim, eu vi uma lata de leite em pó em um almoço na casa de amigos em minha primeira visita a Luanda e eu fiquei tão emocionada que a pessoa esvaziou a lata e me deu. Quase chorei ao ver uma mãe e uma criança negra estampadas numa lata de leite.
Se você acha natural o concurso de Miss Brasil, realizado desde 1954, pela primeira vez ter a coroa passando de uma mulher negra para outra, olhe para um lado. Mas se você acha que isso só aconteceu porque o próprio concurso, que não é bobo e tem cada vez mais perdido audiência, visibilidade, inscrições e patrocínio, viu nisso uma oportunidade, olhe para o outro.
Em novembro de 1956 estreou na TV americana o primeiro programa apresentado por um negro, o fenomenal Nat King Cole, com um show que tinha seu nome. Em 2017 estreia o primeiro programa apresentado por um homem negro em rede nacional, aberta, na emissora de maior audiência no Brasil — e em Angola também — no horário nobre de domingo. Se você acha que 61 anos de diferença é algo natural num país com 54% de população negra, eu não sei para onde você está olhando.
E, por falar em estreia, neste ano também será lançado o primeiro longa no gênero comédia do diretor Jeferson De: “Correndo atrás”. Na obra, Ailton Graça vive seu primeiro protagonista, Lellêzinha, do Passinho, faz seu primeiro filme. E é também o primeiro livro adaptado para o cinema escrito por Hélio de la Peña.
Entre tantas coisas bonitas que se pode destacar sobre o filme — a que já assisti — eu fico com o mais óbvio: um elenco majoritariamente negro, sem bandido e sem polícia. Mais que isso, um diretor negro, um editor negro, trilha sonora, fotografia… Uma comédia negra num roteiro sem caricatura, com nuances que só podem aparecer quando não se é o único.
Se você ficou surpreso, pode estar olhando para o lado errado.