Por que só 0,4% das professoras doutoras na pós-graduação do Brasil são negras?, por Giovana Xavier

25 de junho, 2018

Como equacionar a invisibilização que se reproduz nos meios científicos e literários com o protagonismo indiscutível de mulheres negras que se impõem no debate público?

(Nexo, 25/06/2018 – acesse no site de origem) 

Esta semana o portal Gênero e Número publicou o “Retrato da pós-graduação no Brasil”. De acordo com dados coletados no Censo da Educação Superior (2016), 10 mil professoras doutoras atuando em programas de pós-graduação são brancas, enquanto 219 são mulheres negras (0,4% pretas). Na mesma semana em que a matéria foi divulgada, a socióloga afro-americana Patricia Hill Collins, autora do importantíssimo livro “Black Feminist Thought”, encerrava a estadia de 15 dias, no Rio de Janeiro, no âmbito do projeto Fulbright Specialist.

A extensa agenda da professora da Universidade de Maryland incluiu um encontro com feministas negras, organizado por pesquisadoras da ONG Criola, entre as quais Lucia Xavier e Luciene Lacerda, precursoras das organizações de mulheres negras no país. Envolveu também um curso de formação para estudantes de graduação sobre feminismos negros e interseccionalidade e a realização da conferência “Interseccionalidade, desigualdade e justiça social”, ações de fôlego promovidas na PUC-Rio, com acompanhamento da professora doutora Thula Pires, da Faculdade de Direito da universidade. Embora seja uma das principais teóricas feministas mundiais, doutora Patricia e sua missão de pesquisa na cidade maravilhosa ficaram de fora das coberturas jornalísticas de cadernos literários e programas da grande mídia.

O silêncio acerca da visita da acadêmica e a subrepresentatividade de doutoras negras nos programas de pós inserem-se em um mesmo processo. O de apagamento do trabalho intelectual de mulheres negras, marcante na história da produção científica e literária do país. Lembremos de Maria Firmina dos Reis, que publicou em 1859 nosso primeiro romance abolicionista. Um pioneirismo desconsiderado na cronologia oficial da literatura brasileira. Lembremos da resistência em reconhecer Carolina Maria de Jesus como pensadora social, sem ter de confina-la ao lugar de “ex-catadora de lixo”. Lembremos  do apagamento da obra de Vírginia Leone Bicudo, cientista política e pioneira da psicanálise no Brasil. Sua dissertação de mestrado “Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo” foi uma das principais referências para o desenvolvimento das pesquisas de Florestan Fernandes e Roger Bastide, no projeto Unesco, nos anos 1950. Lembremos do uso da palavra “intimidação” para descrever o sentimento da Academia Brasileira de Letras frente à campanha #ConceiçãoEvaristoNaABL. Isso sem falar na ferida, sem perspectiva de cicatrização, representada pela execução da vereadora Marielle Franco (“preta, lésbica e favelada”) em março de 2018, aos 38 anos.

Para além da constatação de que o Brasil é um país racista, machista e patriarcal, essas histórias de apagamento e desqualificação representam uma dupla face de invisibilização e protagonismo que tem ganhado força nas duas últimas décadas. De um lado, silencia-se a produção científica de intelectuais negras na academia, hierarquizando saberes através de uma noção superficial e parcial de “militância”. Por outro, o ato conservador de silenciar alimenta um fenômeno crescente: o debate nas redes sociais, no mercado editorial, na política institucional.

Todo esse processo, protagonizado por mulheres negras, de conquista de espaços públicos e de fortalecimento de vozes trouxe para primeiro plano a explicitação de conflitos, encobertos pelo mito da democracia racial, que, a cada dia, fortalece-se como o maior vexame da nossa história.

Mais do que nunca, as palavras de Lélia Gonzalez, teórica feminista negra celebrada durante a conferência da doutora Patricia Hill Collins, são providenciais. Uma flecha certeira que os herdeiros do Brasil, sem muito sucesso, tentam se desviar:

“Na medida em nós negros estamos na lata de lixo da sociedade brasileira, pois assim o determina a lógica da dominação (…). O risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados (…) que neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa”.

Giovana Xavier é professora da Faculdade de Educação da UFRJ. Formada em história, tem mestrado, doutorado e pós-doutorado, por UFRJ, UFF, Unicamp e New York University. É idealizadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras. Em 2017, organizou o catálogo “Intelectuais Negras Visíveis”, que elenca 181 profissionais mulheres negras de diversas áreas em todo o Brasil. Ela escreve quinzenalmente às terças-feiras.

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