(Carta Capital, 22/03/2016) Dimensão racial é a que mais suscita resistências no ambiente corporativo, dificultando a mudança no cenário das desigualdades
Após mais de uma década dos programas de ações afirmativas nas principais universidades do País, cerca de 1,8 milhão de jovens, quase metade negras e negros, pressionam o mercado de trabalho em busca de inserção qualificada.
Estudo publicado pelo IBGE mostra que, nos últimos 10 anos, quase triplicou o percentual de negros e negras no Ensino Superior. Esta realidade já não permite o argumento de que a ausência de negros e negras em posições qualificadas em grandes empresas deve-se ao fato de que “não há negros com a escolaridade exigida”.
No que diz respeito à exclusão, ou sub-representação de negras e negros nestes espaços, a bola está com as empresas. Com certeza, ainda há muito a ser feito pelo poder público, mas é bom lembrar que importantes políticas governamentais já vem fortalecendo processos de inclusão profissional de negras e negros, a exemplo dos programas de estabelecimento de cotas no serviço público.
A ampliação da presença negra nas grandes corporações, no entanto, é um desafio – profissionais que atuam em programas de diversidade em empresas afirmam que a dimensão racial é a que mais suscita resistências, dificultando a mudança no cenário das desigualdades raciais.
Cabe aqui uma pergunta: por quais caminhos se torna possível discursar sobre políticas de diversidade e, ao mesmo tempo, não focalizar a desigualdade racial?
Falar em políticas de diversidade é abordar algo que vai além da variedade de aparências, histórias e culturas. Tratam-se de valores atribuídos aos diferentes grupos que constituem a “variedade”, gerando estigma, estereótipo, preconceito e discriminação, ou seja, estamos falando de julgamento de valor.
O diverso, o diferente, é definido a partir da comparação com o que é considerado referência ou universal. Tudo que se afasta desta referência, ou “modelo”, pode ser considerado inapropriado.
Recentemente, uma jovem negra, relatou as dificuldades encontradas para conseguir um posto de trabalho qualificado, a despeito do seu currículo e experiência. Fluente em três idiomas, pós-graduada na área de negócios e com experiência em cargo de chefia, ouviu da consultora de RH que o seu perfil nas redes profissionais era “muito descolado” (cabelo crespo e roupa colorida) e que roupas mais sóbrias combinadas com o cabelo alisado poderiam ser mais apropriadas.
Realmente é cômico. E trágico pelo estrago que provoca na vida de tantas pessoas.
Outro aspecto é a pergunta que surge quando se fala sobre diversidade com foco em raça e gênero: e os outros discriminados? O subtexto deste questionamento é a falsa premissa de que todos somos discriminados, todos somos contra a discriminação e, portanto, precisamos de políticas para todos. Ou seja, a diversidade pode ser utilizada para relativizar o peso da luta contra a discriminação e pela promoção da igualdade de direitos.
Isso reflete um reconhecimento de que brancos e negros, homens e mulheres, heterossexuais e LGBTs, pessoas com e sem deficiência vivenciaram trajetórias muito diferenciadas, herdaram benefícios e prejuízos (concretos e simbólicos) de um mesmo processo histórico.
Essa herança se manifesta subjetivamente (na maneira como se veem ou são vistos, na maneira como se sentem com relação a si próprios e aos outros) e, objetivamente, nas diferentes condições de vida, no acesso aos bens e serviços e às posições de poder.
Por esta razão, as políticas de diversidade, em organizações públicas ou privadas, não fazem sentido quando aparecem apenas como diferenças de visões de mundo, de ideias, de aparências, ou seja, uma ideia de diversidade desarticulada da desigualdade social.
Neste sentido, é de fundamental importância focalizar as desigualdades raciais no mercado de trabalho, antes de poder abordar a diversidade no mundo corporativo.
Desigualdades de raça e gênero
No mercado de trabalho, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2014 aponta a permanência de grandes desigualdades de gênero e raça no Brasil, atingindo especialmente as mulheres negras.
O aumento do desemprego impactou mais profundamente o grupo de mulheres e homens negros do que os brancos. Assim, homens e mulheres que se declaram negros representam 60,3% de todo o aumento de desemprego gerado entre 2013 e 2014. Saliente-se ainda que, em 2014, o Brasil possuía 2,4 milhões de mulheres negras desempregadas e 1,2 milhão de homens brancos na mesma situação.
Apenas 31,3% das mulheres negras ocupadas com 16 anos ou mais, em 2014, possuíam carteira assinada, taxa muito inferior ao percentual de homens, na mesma situação, há uma década.
Os homens brancos ainda percebem rendimentos 60% superiores aos das mulheres negras. Nos cargos diretivos, apenas 10,8% ocupam estes cargos.
Esta persistente desigualdade pode ser gerada por diferente fatores, dentre eles: a divisão racial e sexual do trabalho, marcada pela persistência de conceitos e atitudes negativas sobre o perfil, capacidade, desempenho e habilidades profissionais de negros e negras.
Há também o chamado “teto de vidro”, que dificulta o acesso das mulheres e dos negros e negras, em especial, às áreas que exigem mais responsabilidade e oferecem os melhores salários. Isso acontece porque homens brancos tendem a promover outros com o mesmo perfil, pois ainda veem mulheres e negros como menos competentes.
Além disso, contam a persistência da dupla jornada das mulheres (no trabalho e em casa) e restrições impostas às mulheres pela responsabilidade reprodutiva. Também contribuem a menor participação de mulheres negras nas redes de contatos dos ambientes corporativos e a menor familiaridade e experiência diante de códigos institucionais de poder e comando, em face do racismo estrutural do Brasil.
Este cenário, porém, pode ser alterado se medidas concretas forem adotadas. Um começo é o diagnóstico dos entraves institucionais na inserção e ascensão profissional, o que implica em monitoramento de informações demográficas das empresas e organizações.
Para tanto, é necessário observar a evolução de dados relativos ao gênero, cor/raça, etc., nos processos de seleção, recrutamento, treinamento, promoção e término do vínculo de trabalho. Pode-se observar ainda como a diversidade se reflete no quadro de fornecedores das empresas, como se manifesta nos serviços e produtos que ela oferece.
Neste sentido, algumas boas iniciativas empresariais, embora isoladas e pontuais, podem ser identificadas no Brasil.
É fundamental mapear e disseminar estas iniciativas, com vistas a compartilhar as metodologias, os principais desafios para sua implementação e alguns resultados.
Trata-se de um caminho efetivo para contribuir para a construção de um ambiente empresarial e organizacional mais democrático, que respeite os direitos humanos, aposte no desenvolvimento econômico e social do País e reflita a sociedade em que a empresa está inserida. Com isso, valoriza-se um dos principais patrimônios do Brasil: a riqueza da diversidade do seu povo.
Cida Bento é doutora em Psicologia e coordenadora executiva do Centro de Estudos das Relações do Trabalho e Desigualdades (CEERT).
Acesse no site de origem: Presença negra nas empresas ainda é desafio, por Cida Bento (Carta Capital, 22/03/2016)