Nos olhos azuis de Paulina Chiziane, é difícil enxergar a linha que separa pupila e íris. A falta de divisas se estende à forma como Paulina vê o mundo.
(BBC Brasil, 30/10/2016 – acesse no site de origem)
Primeira mulher de Moçambique a publicar um romance e uma das mais importantes escritoras da África, ela nega ser romancista, feminista ou religiosa.
Foge das definições, em busca do que chama de liberdade absoluta, aquela que relata nas pequenas comunidades do continente onde não há estradas nem vigias, aquela que diz ser desconhecida de todas as mulheres. De suas personagens, majoritariamente femininas, e dela própria, que diz censurar seus escritos.
Se Vinicius de Moraes (1913-1980), um de seus poetas preferidos, pôde descrever o corpo nu de uma jovem, a autora encontra dificuldades de fazer o mesmo com um homem.
“Temos o nosso poeta, que já morreu, Eduardo White (1963-2014). Ele tem um volume só sobre sexo. Jesus! Certa vez, eu disse ‘Eduardo, qualquer dia vou escrever o mesmo que tu escreves, vou inverter’. Ele respondeu ‘Olha, as mulheres jamais irão escrever. Vocês são prisioneiras’. Ele tem razão. Ele é um homem livre, mas nós somos prisioneiras.”
Apesar da constatação, a escritora diz que jamais deixará de trabalhar pelos direitos das mulheres, bandeira que abraçou depois de deixar a luta política na Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique). Elas são o tema central da maioria dos seus livros, nos quais fala das tradições de seu povo e usa palavras em chope, uma das línguas locais.
Com um deles, Niketche, sobre uma moçambicana que conhece as amantes do marido e decide pela relação poligâmica, venceu o prêmio José Craveirinha, ao lado de Mia Couto.
Paulina, que também foi candidata ao Nobel da Paz por sua literatura militante, esteve no país para um evento do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e falou com a BBC Brasil.
BBC Brasil – Você sempre fala da literatura como instrumento para transformação da realidade. Como ela se difere de um partido político ou de um grupo como o Frelimo?
Paulina Chiziane – Falo da experiência de Moçambique. A consciência da opressão e da necessidade de luta foi feita através da poesia. José Craveirinha (considerado o maior poeta do país) foi um mestre. Pequenas linhas, declamações, e aquilo passava de boca em boca, então, todo mundo acordava.
O despertar para a consciência nacional e para a luta pela libertação nacional foi feito pela poesia. Mesmo a luta das mulheres. Há poemas que foram feitos para despertar a mulher para a luta. Esse é um tipo de literatura.
Mas existe a outra literatura, que oprime a mulher, começando pelos textos chamados sagrados, nos quais a mulher tem de ir para o inferno e o homem, para o céu. Neste momento, gosto mais da literatura com causa.
BBC Brasil – Se pudesse resumir as lutas perpetradas por sua literatura, o que diria?
Chiziane – Basicamente, pelos direitos humanos. Especificamente, pelos direitos da mulher.
BBC Brasil – Hoje o debate sobre os direitos das mulheres está muito atrelado ao feminismo, e você não se define como feminista. Por quê?
Chiziane – É uma questão de denominação. Por que tem de ser chamado de romancista, depois de feminista, depois de…? É muita coisa para uma cabeça. Deixem-me fazer minhas lutas. Agora, ponham os nomes que quiserem, mas não quero me assumir assim.
Da mesma forma como não me prendo a uma religião. Não gosto de ficar presa a um grupo. Porque, se sou membro do grupo, não terei a liberdade para fazer a devida crítica. Hoje, falo da religião porque não faço parte dela.
BBC Brasil – Você é tida como a primeira mulher a escrever um romance em Moçambique e lançou seu livro de estreia, “Balada de Amor ao Vento”, em 1990. Por que tão poucas africanas escrevem?
Chiziane – São várias questões. A primeira delas é o acesso à educação, que é menor para as mulheres. O segundo é a sobrecarga na mulher, porque ela tem de trabalhar, cuidar da família, e ainda mais escrever. É muita coisa.
A tarefa da escrita é muito absorvente e nem sempre a mulher pode estar presente, não é fácil. Cada vez mais, há mulheres que estão escrevendo e publicando, mas ainda é uma aventura muito grande.
Mas estão aparecendo grandes mulheres na literatura. Na África, de maneira geral, e em Moçambique, há uma nova geração se afirmando.
BBC Brasil – Você costuma mencionar, além das dificuldades práticas, a falta de liberdade mental das mulheres. Pode explicar isso?
Chiziane – No nível de tradições e religiões, já existe um menu daquilo que a mulher deve pensar. Pensar em cozinhar, em se pentear bem, mas ter liberdade para pensar outra coisa fora da casa e das obrigações familiares não é muito comum. Muitas sociedades não permitem, e as mulheres acabam ficando confinadas nesse mundo pequeno.
BBC Brasil – Na África, essa é a realidade da maioria das mulheres?
Chiziane – Infelizmente. É a grande realidade da maior parte das mulheres. E em qualquer religião, em qualquer tradição. Quando se diz respeito à repressão da mulher, acho que todas as instituições são iguais, sejam europeias ou africanas. As religiões são iguais, sejam árabes, cristãs ou chinesas.
Quando se trata de reprimir a mulher, todos são unânimes e irmãos. Às vezes, no mundo considerado primitivo, a mulher tinha mais liberdades que hoje.
Em Moçambique, em determinadas regiões, a mulher tem direito ao sexo. Ela diz ‘não gosto deste homem, quero dormir com aquele’, e é permitido. Quer dizer, essa tradição existia, mas foi sendo cortada. Chegou o cristianismo e piorou. A mulher tem hoje que dizer ‘sim’, mesmo que não goste. Aliás, nem pode dizer ‘sim’, tem de se submeter, é a realidade.
Portanto, em termos de tradição, essas mulheres têm o direito ao sexo, mas, em termos de religião e de instituição, não têm. As religiões modernas são piores que as tradicionais. Às vezes, visito uma dessas aldeias no interior do país. As mulheres perguntam ‘mas vocês, nas cidades, são felizes? Toda a vida com o mesmo marido!’. Dizem que ‘aqui não é assim. Quando me zango com meu marido, tiro umas férias, vou para casa dos meus pais e arranjo outro.’ Há sociedades ditas menos evoluídas onde mulheres têm mais expressão. É questão de estudar, conhecer melhor.
BBC Brasil – Em outras entrevistas, você disse que é necessária uma autocensura para publicar livros em Moçambique. O que você não pode dizer?
Chiziane – Em Moçambique, ainda não temos muitos problemas. Do período da independência até agora, tem-se publicado um pouco de tudo. Ainda não se sente muito a chamada censura. Mas a autocensura existe.
(Na palestra dada no Brasil), usei aquele exemplo lindo do Vinicius de Moraes (poemas sobre o corpo feminino nu). Gosto dele. Um homem pode escrever aquilo, mas, como mulher, não me vejo escrevendo, me censuro. Porque é imoral, porque depois não fica bem, porque as pessoas vão pensar, os filhos irão se zangar.
Sinto mais essa autocensura no feminino. Os homens publicam qualquer coisa.
BBC Brasil – Então não seria uma questão política, mas interior, das próprias mulheres?
Chiziane – É interior. O que os homens escrevem, eu não posso escrever. Se descrever o sexo de um homem, o mundo todo vai atirar pedras em mim, vai me chamar de nomes. Mesmo que tenha vontade, não é fácil.
O poema do Vinicius é lindo. Mas ele escreveu assim porque é permitido. Uma mulher não pode escrever aquilo.
Temos o nosso poeta, que já morreu, Eduardo White. Ele tem um volume só sobre sexo…Jesus! Eu disse ‘Eduardo, qualquer dia vou escrever o mesmo que tu escreves, vou inverter. Ele respondeu ‘olha, as mulheres jamais irão escrever. Vocês são prisioneiras’. Ele tem razão. Ele é um homem livre, mas nós somos prisioneiras.
BBC Brasil – Você diz que não é romancista, mas contadora de histórias, e que seu pai e seu avô tiveram muita influência no seu ofício. Por que nega a definição?
Chiziane – Para contar uma história, a pessoa precisa ter liberdade, contar como quer, no momento que quer. Agora, para ser romancista, existem regras, e, às vezes, há coisas que não se pode dizer, porque o romance, em termos acadêmicos, é feito de uma ou de outra forma. Então, não cabe para aquilo que eu quero. De vez em quando, faço uma narrativa e paro para meter uma canção, por exemplo, o que não é comum no romance. Paro no meio, meto uma cantiga.
Tive uma grande influência do vilarejo onde eu vivia. Era um lugar bom, de muita liberdade. Na zona rural, o conceito de liberdade é muito grande. Na cidade, sempre é preciso tomar cuidado. No campo, não. Não há carro, não há perigo. Não há a preocupação de proibir toda hora. Todos os gestos de passear e sonhar são permitidos.
BBC Brasil – Em sua palestra, você mencionou como as novas religiões estariam criando uma “inquisição” do século 21 na África. Como isso acontece?
Chiziane – Não só. Os americanos descobriram Deus não sei onde. Os chineses estão descobrindo Deus, os árabes estão descobrindo Deus. E todos acham que a África não conhece Deus. Precisam levar sua compreensão a cada um.
Então, o que é da Europa vem com esses resíduos da inquisição. As igrejas evangélicas estão exatamente com a mesma filosofia da inquisição: não pode haver mais nada, só aquilo que eles pensam.
É só ver no que a inquisição acreditava: na força do diabo. Que pena, porque deveria ser na força de Deus. As igrejas evangélicas também acreditam muito na força do diabo, e acreditam que esse diabo vem da África.
Portanto, é uma religião mais voltada ao culto ao diabo e à demonização africana. Matam tudo em nome de alguma coisa sobre a qual nem têm certeza.
Ingrid Fagundez