Rosana Paulino, artista plástica: ‘O sistema de arte no Brasil é muito colonizado’

14 de setembro, 2016

Paulista com trabalhos voltados à questão do racismo e da mulher negra esteve no Rio para participar da série ‘Diálogos sobre o feminino’, no CCBB

(O Globo, 14/09/2016 – acesse no site de origem)

“Tenho 49 anos e uma trajetória de 20 anos nas artes. Sou bacharel em Gravura pela ECA-USO, com especialização em Gravura pelo London Print Studio e doutorado em Poéticas Visuais pela USP. Meu interesse é a questão negra, com foco na posição da mulher negra na sociedade brasileira.”

Conte algo que não sei.

As mulheres negras são uma das alavancas principais para o pensamento e a produção de arte contemporânea. Muitas meninas jovens negras estão se movimentando, correndo atrás de artes visuais, literatura, teatro. Elas trazem um sopro novo. Mas ainda falta representatividade.

Por quê?

O Brasil, curiosamente, é um país onde temos produção feminina que começa no início do século passado. Cabe a pergunta: por que as mulheres foram aceitas? Será que a função do artista não era vista como uma coisa importante? Outra questão é sobre a mulher negra. Quando a gente olha para o estrato social do país, ela vem por último, na base da base. Isso também vai se refletir nas artes. Tudo que acontece é reflexo de um campo maior, que é a sociedade.

Você é mulher, negra e de periferia. Como sua história contribuiu para o processo de criação artística?

Quando se é artista não se foge de quem é. Perceber que meus valores não estavam presentes na produção contemporânea me chamou atenção. Vi a falta de representatividade, a negatividade ligada à cultura negra, o estereótipo e uma construção de que o local social da mulher negra é aquele que passa da mucama para a empregada doméstica, da ama de leite para a babá. Questões que via todos os dias ao meu redor.

Em seu trabalho, você costura bocas, olhos e gargantas de negras. Por que usar uma técnica considerada feminina?

Pela ironia. A ideia que vem à cabeça quando se pensa o bordado é quase aquela imagem bucólica da mulher em um ambiente protegido, quando, na verdade, não percebemos a violência que existe entre quatro paredes. Quis inverter o sentido do objeto. É um trabalho que se lê em múltiplas camadas. Tento entender a História do país do ponto de vista negro e feminino. A boca que não fala, o som que não é ouvido, a impossibilidade de se ver no mundo como sujeito. Há um jogo de significados construído através da costura, um elemento simples e de domínio feminino, mas que pode ser extremamente violento.

Você foi vítima de violência doméstica?

Não. Mas na periferia isso é constante e mais visível. Já nas classes altas, é mais escondido. Poucas mulheres têm coragem de falar que foram vítimas. O Brasil tem essa questão de esconder a violência nessas classes. O que os vizinhos vão falar? Essa hipocrisia é um dos pontos que fazem com que a violência contra a mulher acabe sendo muito subterrânea. As classes mais baixas têm menos a perder no ponto de vista do escândalo. Nas mais altas, essa moral boboca e antiquada é um tiro no pé. A violência doméstica e a sexual ocorrem em todos os estratos.

Acredita que o mundo da arte é livre de preconceitos?

Em alguns momentos é mais aberto e, em outros, se nega a discutir questões ligadas à própria dinâmica da sociedade. Queremos falar sobre a violência, que está intrinsecamente ligada à construção do país. A questão é se os museus querem discutir isso. Agora estamos começando a ser acolhidos. O sistema de arte no Brasil é muito colonizado, aceita passivamente questões que vêm de fora sem debater se são pertinentes à nossa realidade. Sinto falta de discussões relativas à formação do país, sobre quem somos e o porquê desse grau de violência. Quem não pensa o país não encontra soluções para os próprios problemas.

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