(Época, 23/06/2015) Apesar de algumas ações do governo, dados mostram que o sistema público de saúde continua a discriminar a população negra
Rafaela, de 15 anos, grávida, foi durante a gestação a todas as consultas que manda o manual. Sete. Deu entrada em abril em um hospital público, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, para dar à luz um menino. O trabalho de parto começou às 3h de um sábado, e a equipe médica, formada apenas por enfermeiros, não mediu a pressão arterial dela nenhuma vez até as 14h. A garota começou a ter convulsões por eclâmpsia, quadro causado justamente por pressão alta, quando enfim foi levada ao centro cirúrgico para uma cesariana. No procedimento, o útero foi perfurado. Com hemorragia, foi transferida em seguida para outro hospital. O bebê nasceu com três quilos e 335 gramas, mas a mãe nem chegou a vê-lo. Morreu após uma histerectomia, quando o útero ou parte dele é retirado.
O caso tem um detalhe importante: Rafaela era negra. A morte dela, acusam ONGs como a Criola da médica e ativista Jurema Werneck, poderia ter sido evitada se a discriminação racial na saúde já tivesse sido erradicada no Brasil. Não que os enfermeiros da maternidade tenham deixado a garota morrer deliberadamente por causa da cor. Não é assim que o racismo na saúde funciona. Ele aparece nos pequenos gestos. Faltou informá-la durante as consultas pré-natal sobre os riscos da pressão alta – a população negra sofre mais com esse problema, e uma menina de 15 anos grávida tem risco ainda mais elevado. Faltou medir a pressão durante o parto. “Às vezes as pessoas nem percebem que estão sendo racistas, mas o racismo está lá. Chega na vez do negro, e a ficha acaba. O atendimento é prestado com menos cuidado do que com o branco. O médico não toca o corpo do negro. Na odontologia isso é ainda pior, porque a maior parte das consultas ocorre em consultórios”, diz José Marmo, dentista, também filiado à ONG Criola. “O racismo faz isso. Pequenas negligências se acumulam, tornam-se graves, até que a pessoa morre”, afirma Jurema.
A discriminação no sistema público de saúde é mais sentida por negros do que brancos, segundo números da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) revelada em maio, e isso mostra que ela tem caráter racial. De toda a população branca atendida, 9,5% saem da unidade hospitalar com o sentimento de discriminação. O percentual é maior entre pretos (11,9%) e pardos (11,4%), ambas nomenclaturas adotadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) cuja soma representa a população negra. Menos pretos e pardos saem com avaliação “boa” ou “muito boa” do atendimento, 70,6% e 69,4%, em relação aos brancos, 73,5% deles satisfeitos. E esses são só os dados menos “objetivos”, que dependem da opinião dos entrevistados. Os concretos (confira no gráfico abaixo) revelam que negros têm desvantagem em todos os quesitos pesquisados pela PNS: consultam menos médicos e dentistas, têm menos acesso a remédios receitados no atendimento, tiveram mais dengue, têm mais problemas de saúde que impedem alimentação, têm menos planos de saúde (exceto quando o empregador paga a conta, outro sinal de desigualdade), usam menos escova, pasta e fio dental.
Há algumas explicações para a desigualdade racial na saúde. A primeira é o próprio preconceito: a discriminação aos negros, apesar da miscinegação brasileira, não acabou. A desigualdade econômicapesa, visto que a população negra tem menos poder financeiro para pagar um plano de saúde privado do que a branca. Há também o fato de a informalidade no emprego ser maior entre pretos e pardos – mulheres negras que trabalham como domésticas sem carteira assinada não têm direito a plano de saúde, por exemplo. E há a questão geográfica. “A rede do SUS [Sistema Único de Saúde] está mais presente em regiões de classe média, e a população negra por fatores históricos está concentrada em regiões periféricas”, afirma Irineu Barreto, analista do Sistema Estadual de Análise de Dados de São Paulo (Seade) que se dedica à pesquisa da desigualdade racial. “E mesmo nas regiões mais pobres a população negra tem mais dificuldade do que a branca. A pobreza é mais cruel para os negros”.
É difícil concluir a partir de dados se o racismo na saúde tem diminuído ou aumentado no Brasil porque faltam pesquisas. A PNS de 2015 com detalhamento por raça e cor é a primeira a fazê-lo. Mas há um indício disso nos números sobre mortalidade materna do SUS. Em 2004, 62.659 mulheres morreram em decorrência do parto, das quais 47% eram brancas e 43%, negras, a soma de pretas e pardas. Dez anos depois, em 2014, 63.408 mortes foram registradas. Delas, 42% eram brancas, e 53%, negras. Em um período de dez anos, portanto, não só aumentou o número de mulheres que continuam a morrer de complicações de uma gravidez, a condição da parcela negra piorou enquanto a da branca melhorou. Há a ressalva de que, em 2004, o preenchimento dos dados ainda era precário. Havia médicos que assinalavam “branca” em vez de “preta” ou “parda” ao descrever a paciente na ficha. Naquele ano, as investigações sobre as mortes das mães também eram muito menores. Independentemente de melhorar ou piorar, o fato é que o quadro é grave.
E o governo?
Era 27 de outubro de 2006 quando o então ministro da Saúde, Agenor Álvares, na abertura de um seminário sobre saúde da população negra no Rio de Janeiro, declarou que havia racismo no SUS. Médicos, por meio de entidades de classe, rejeitaram. O argumento usado pelo Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro era de que a discriminação era social, entre ricos e pobres, e não por cor, semelhante aos argumentos usados em áreas como educação para rejeitar cotas para negros em universidades. O ministro se baseava em dados coletados pela Fundação Oswaldo Cruz. Pesquisadoras analisaram 9.633 prontuários de grávidas e perceberam que, a cada 100 pacientes brancas, 16 não recebiam anestesia. Entre 100 negras, o número subia para 23. Entre pessoas mortas por doenças como tuberculose, aids e hipertensão arterial, o padrão se repetia.
A declaração do ministro evidenciou esforços de ativistas. O problema é que as atitudes burocráticas – criar uma Comissão Intersetorial de Saúde da População Negra no Conselho Nacional de Saúde (CNS) em 2008, instituir a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra em 2009, incluir no Estatuto da Igualdade Racial trechos que tratam da saúde em 2010 – não viraram ações concretas. Jurema Werneck, da ONG Criola, ocupou vaga do movimento negro no CNS. Ela percorreu o país para estudar políticas públicas, negociar com secretarias de saúde de municípios, mobilizar autoridades para o melhor tratamento do negro na saúde. A conclusão dela é que houve avanço no reconhecimento do racismocomo um problema na saúde, mas pouco além disso. “A política não foi implementada como deveria”, diz ela. “O Agenor Álvares foi o único a enfrentar o problema com seriedade. Depois dele uns e outros ministros disseram, mas não fizeram nada. O atual [Arthur Chioro] nem sequer responde. Faz cinco anos que a saúde do negrovirou lei, e ela continua sendo ignorada”.
Procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde afirmou que “compreende a situação de vulnerabilidade da população negra” e ressaltou o papel do SUS na “promoção da equidade”. O órgão citou alguns dados da PNS para defender a atuação do governo: o acesso à Farmácia Popular, maior entre negros (25,3%) do que entre brancos (22,1%), e a obtenção de medicamentos via SUS, com negros (35,2%) em vantagem sobre brancos (30,2%). Quanto ao sentimento dediscriminação no sistema de saúde, o ministério acrescentou que 53,9% dos discriminados alegaram como razão falta de dinheiro, 52,5% classe social e 13,6% raça e cor.
Entre ações do governo federal para combater a desigualdade na saúde, a pasta mencionou a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), instituída em 2009, a “Campanha SUS Sem Racismo”, lançada em 2014 com cursos à distância para 5 mil profissionais da saúde em todo o país, e a abertura do segundo edital de pesquisa em saúde da população negra, que vai destinar R$ 2 milhões a pesquisadores, para que descubram maneiras de ajustar o sistema público de saúde para coibir a discriminação. O resultado das ações mencionadas pelo governo poderá ser medido, de modo concreto, só depois de 2018, para quando a próxima rodada da PNS está agendada.
Rodrigo Capelo
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