A ativista e realizadora Viviane Ferreira veio ao Ciclo de Cinema Afro-brasileiro do festival de cinema Queer Lisboa apresentar duas curtas-metragens e debater sobre a condição das mulheres. Ao Delas.pt revelou um Brasil a preto e branco, onde a cada dia as mulheres negras têm de lutar pelo direito de existirem. Aos 31 anos faz do racismo e do feminismo a sua luta e a sua arte.
(Delas, 18/12/2016 – acesse no site de origem)
É cineasta e ativista. Alguma das áreas predomina na sua vida?
Não consigo hierarquizar essas duas características porque não concebo a arte sem política. Toda a expressão artística é uma expressão de convicções políticas.
O cinema é um sonho de menina?
Quis ser muitas coisas: piloto de avião, e a minha mãe colocou-me numa escola para crianças que queriam seguir carreira na aeronáutica; música, queria aprender cavaquinho para tocar samba, e a minha mãe deu-me o instrumento; atriz, e a minha mãe colocou-me num curso de teatro; e quis ser cineasta e a minha mãe pôs-me num curso de audiovisual.
Que mãe incentivadora!
Ela sempre disse que o importante é sonhar. Podíamos sonhar ser o que quiséssemos e, se estivesse ao alcance dela, ela ajudaria, se não estivesse que fossemos tentar realizá-los. As conversas lá em casa sempre giraram em torno do que a gente sonhava. Depois, quando estava no ensino médio, tinha uma dúvida muito grande: fazer cinema ou Direito.
Porquê Direito?
Por causa do ativismo no movimento de mulheres negras na Bahia, parecia-me muito importante entrar na universidade de Direito.
De onde surgiu esse interesse pelo ativismo? Era muito jovem.
Tinha quase 18 anos. Nasci dentro de um terreiro de candomblé, em Salvador, participei em grupos de jovens no terreiro, nas discussões de temas sociais. Desde muito cedo que visitava asilos para levar roupa e alimentos aos mais velhos, que já não tinham o aconchego das suas famílias, ou a orfanatos, distribuía refeições a pessoas que não tinham o que comer… Falava-se muito de que precisávamos de ser solidários com essas pessoas porque comungávamos da mesma pertença racial, que muitas estavam em situações diferentes da nossa simplesmente porque eram negras. Na adolescência ingressei numa associação de mulheres negras e aí os temas políticos ficaram mais vivos. Entendi que era importante estudar Direito para poder ajudar.
Estudou cinema ao mesmo tempo.
Quando terminei o ensino médio não tinha condições para fazer cinema porque na minha cidade, Salvador, só existia um curso e era mesmo muito caro. Aí, migrei para São Paulo e consegui uma bolsa de estudos. Paralelamente, inscrevi-me em Direito pois tinha medo de não conseguir entrar em cinema, já tinha tentado antes. Acabei por entrar nos dois e fazê-los ao mesmo tempo.
Deve ter sido difícil conjugar tudo.
Foi terrível mas valeu a pena. Tinha aulas de Direito de manhã, à tarde estagiava num escritório, à noite tinha aulas de cinema e depois estudava até as quatro ou cinco da manhã. Dormi umas três horas por dia durante três anos. E tinha os fins de semana, altura em que conseguia ver filmes, os clássicos, e fazer exercícios.
Como usa o Direito hoje em dia?
Trabalho com direito público e direitos de autor. O sistema cultural no Brasil é suportado pelo poder público. Ainda que a iniciativa privada aporte recursos, são sempre incentivados por legislações e a população negra, no geral, não reúne ainda todas as ferramentas para ter acesso a essa burocracia. O Brasil tem tendência para legislações extensas e com uma linguagem muito complicada… Eu tento ajudar.
Então explica-lhes como podem chegar ao financiamento…
Exatamente. Um outro foco de atuação é combater a cópia: muitos artistas negros, de diversas linguagens, deparam-se com o facto de que artistas brancos, já conceituados, visitam os seus ateliers e depois reproduzem o que viram.
Plagiam as obras?
Sim, é muito frequente e é uma briga difícil porque temos um sistema judiciário que é extremamente racista. Tentar convencer o [agente] judiciário de que aquela obra foi concebida por uma pessoa negra é difícil porque a mentalidade branca brasileira não consegue admitir outras formas de existência. O poder judicial é maioritariamente branco…
Muitas vezes pensa-se que o Brasil é uma mistura de raças…
… harmónica! Isso não é real. Gilberto Freyre [considerado um pioneiro da Sociologia no Brasil] contou essa piada para o mundo e o mundo acreditou mas a realidade é extremamente dicotomizada: brancos de um lado e negros do outro.
Mas a maior parte da população é mestiça, nem branca nem negra.
Não. Há é uma população negra com uma diversidade epidérmica muito grande. Os pretos e pardos no Brasil são negros; os brancos são completamente brancos – e isto, obviamente, se esquecermos a população indígena que convive naquele território, resistindo e sendo dizimada a cada dia que passa. Mas a realidade do Brasil é que há polícias preparadas para agredir e atacar corpos negros.
Ataques policiais?
Há instrução, formação, que é dada às polícias brasileiras para matar pessoas negras. E vários estudos comprovam-no. Quando chegam aos quartéis os soldados aprendem que o elemento suspeito é uma pessoa negra. Em qualquer cidade, todos os corpos negros são seguidos por guardas ainda hoje no Brasil.
E as mulheres negras estão numa situação mais delicada…?
Exatamente. É uma vida de extrema, extrema dificuldade. São invisíveis. Todos os dias esses corpos femininos transitam no Brasil como se não existissem, como se não entregassem a sua força vital para a existência daquele próprio país.
Uma dificuldade partilhada pelas mulheres brancas?
Não, não dá para equiparar a experiência de ser mulher negra no Brasil e de ser branca. Há uma questão básica e acabamos por ter de discutir feminismo: enquanto as mulheres brancas estavam brigando por acesso ao mercado de trabalho, nós já cumpríamos dupla jornada nesse mercado. Enquanto as mulheres brancas estavam brigando pelo direito ao divórcio, por exemplo, nós já éramos mães solteiras. São experiências distintas. Quando as mulheres brancas estavam fazendo qualquer outra coisa, as mulheres negras estavam cuidando dos filhos delas, sendo babás, empregadas domésticas… Mesmo entre as ativistas esta é uma questão muito importante porque, na perspetiva do ativismo feminista branco, todas são mulheres até que uma mulher branca precisa de uma babá para cuidar do filho. Nesse momento a mulher negra deixa de ser mulher, aí ela é a babá.
Acha que isso se mantém ainda hoje?
Mantém-se.
A falta de unidade dos movimentos feministas é bastante criticada.
Eu acho que um dos grandes problemas é a falácia da unidade. Não existe, as pessoas são diferentes e, portanto, os movimentos são diferentes. Há alianças em momentos oportunos e específicos, quando dos temas são comuns. Quando não são não dá para haver alianças porque eu não posso defender mais o seu sustento do que o meu. Não dá para cobrar uma unidade porque, de facto, não há um movimento feminista, existem vários, o que serve para as feministas negras não serve para as indígenas porque a experiência de ser indígena é outra… Obviamente que na discussão política encontramos pontos de consenso e aí é possível negociar o fortalecimento de cada uma destas vertentes mas exigir unidade é de uma ingenuidade absurda.
Também há um feminismo queer. Tem tido intervenção nessa área?
No interior do feminismo negro é uma questão que a gente também discute e luta. Não podemos partir do princípio que todas as feministas negras são heterossexuais, bissexuais ou lésbicas, temos consciência da diversidade. Mas há uma coisa que nos une que é a pertença racial. Até que a gente consiga dar conta da questão racial, conseguimos tratar de todos os outros assuntos mas sempre alinhados com o tema da raça. Porque a realidade é que se eu, negra, vou tratar do feminismo queer sem considerar a raça, tenho a certeza de que, mesmo no interior desse movimento, vou estar na base das prioridades. O elemento raça condiciona-nos à marginalidade em qualquer movimento. Por isso não consigo considerar outra base de atuação que não seja o feminismo negro.
Mas têm apoiantes de outras raças.
Há pessoas que se identificam bastante com a forma de luta mas para pertencer ao feminismo negro é necessário sê-lo. Pode estar “junto” mas não pode “ser”. Estar comigo não significa dizer que pode ser o que eu sou – e vice-versa.
Veio a Portugal apresentar duas curtas-metragens. Uma delas, O Dia de Jerusa, foi exibido no Festival de Cannes de 2014. De que trata?
Trata da solidão da mulher negra. Na realidade fala muito mais de presença do que de solidão mas toda a trama vem das minhas reflexões, inclusive no seio do movimento feminista negro, sobre aquilo que chamamos a solidão da mulher negra. É muito comum transitar no Brasil e ver mulheres negras completamente perdidas e alheias do seu entorno, mesmo em contacto com outras pessoas vivem num estado de extrema solidão, na impossibilidade da partilha de vida, de sonho, de perspetiva.
É a solidão como fenómeno social e não um problema pessoal.
Há um elemento que dá conta disso que é a aliança entre o machismo, o sexismo e o racismo, tão entranhados. Essa tripla violência atinge de uma maneira muito potente os corpos negros femininos e há almas dilaceradas nesse processo. Incomodava-me o facto de que o movimento vocalizava muito essa solidão a partir da possibilidade de se ter um companheiro ou companheira. Eu ficava pensando que o problema vai além de ter ou não ter uma pessoa na cama porque isso, inclusive, pode ser escolha, não ter ninguém dentro de casa e ter muitas pessoas ou, num determinado período da vida, não querer estar com ninguém. E também há pessoas casadas que ainda assim são sós porque não há partilha, troca.
Como se interessou por esse tema?
Tenho uma relação muito próxima com as pessoas mais velhas porque sou do candomblé. Crianças e velhos são extremos que, dentro do terreiro, a gente cuida, lida como pérolas, mesmo: os velhos porque guardam o saber e as crianças porque guardam a expectativa de aprender para garantir a continuidade. Quando cheguei a São Paulo, com 19 anos, vi uma realidade muito diferente da vida em Salvador: as pessoas mal se cumprimentavam e as mais velhas transitavam na cidade como se já não prestassem para muita coisa. Isso assustava-me, verdadeiramente. Um dia, estava numa paragem de autocarro e havia uma senhora negra a xingar os filhos e a família porque era o aniversário dela e não tinha ninguém para comemorar. Era ao lado do Teatro Municipal, com uma arquitetura fantástica, e um raro dia de sol em São Paulo. Estava de fones, a ouvir Caetano Veloso, eu feliz e ela muito brava, não combinava. Ela tentava conversar e eu dizia que o Teatro era bonito, que estava sol. Depois ela desistiu de tentar conversar comigo e começou a chorar em silêncio, com medo de me incomodar… Desconcertou-me completamente. Fiquei umas duas noites pensando naquela imagem e daí nasceu a ideia do filme, pensar o que poderia ser o impacto da solidão em corpos negros femininos e já envelhecidos.
Há pouco mencionou o machismo. Os homens negros são muito machistas?
O machismo é uma praga que está aí e atacou todas as árvores, incluindo os homens negros. Sim, existe também tensão entre a existência negra feminina e a masculina. Existe tensão no mundo. Temos discutido, por exemplo, a questão do genocídio no Brasil. Existe um genocídio da juventude negra que abarca maioritariamente os rapazes negros. E há também um femicídio que é preciso ser considerado.
Genocídio e femicídio. Pode concretizar?
O estado brasileiro tem diversas formas de tirar a vida às pessoas negras. Os rapazes estão mais expostos à ação direta da polícia. E há a questão do acesso à saúde, por exemplo: é um absurdo, as mulheres negras vão ao sistema público e saem de lá doentes porque os médicos não tocam, não examinam. O momento do parto é uma violência, as mulheres ficam nas macas gritando e os médicos dizem “ah na hora de fazer não doeu, né?”. Coisas absurdas que as mulheres negras ainda passam no sistema de saúde e há óbitos por conta dessas atrocidades. Também há negras lésbicas transitando pelas ruas no Brasil e são espancadas porque trocam carinhos.
Isso não acontece com as outras mulheres?
Há histórias de lésbicas brancas que recebem insultos verbais mas é diferente. Na mente da população brasileira, se se vai agredir um corpo branco ainda se pensa duas, três vezes. Para agredir um corpo negro não há barreira, não há limite.
Tem, portanto, muitos motivos para continuar a sua luta…
Exatamente. Vou continuar existindo. Faço Direito, faço cinema, vou querer fazer outras coisas mas, no fundo, tudo isto é ter a certeza de que tenho o direito de existir dessa forma que sou, sendo mulher negra. E vou brigar por isso a minha vida toda!