(BBC Brasil, 20/08/2015) Eu tenho uma franzida de testa bem peculiar e carrancuda que eu passei a usar quanto tinha 20 anos para tentar acabar com os assobios e gritos que ouvia na rua quando morava no México.
Mas teve um dia que eu fui além da expressão facial e usei outra tática.
Em um dia de muito calor, eu entrei em uma loja para comprar água. Enquanto esperava para atravessar a rua, dois homens em uma van começaram a gritar indecências sobre o meu corpo.
Tentei ignorar, mas de repente algo veio de dentro de mim.
Abri minha garrafa de água e esvaziei-a na cara dos dois.
Os comentários, claro, pararam, e eu me senti bem melhor.
Alguns anos depois, eu mudei para o Oriente Médio. No início, eu senti que era exatamente o oposto da América Latina.
Uma região onde homens e mulheres mal interagem entre si e onde a imagem clichê de uma mulher usando uma roupa que a cobre dos pés à cabeça não poderia estar mais distante da imagem também clichê de mulheres seminuas no carnaval do Rio de Janeiro.
Mas olhando para além do óbvio, as duas regiões têm muito em comum quando o assunto é o papel da mulher na sociedade.
Proteger a honra da mulher é algo fundamental na cultura de parte do Oriente Médio e isso muitas vezes é usado como desculpa para proibir mulheres de terem os mesmos direitos que os homens.
Você precisa de um homem para dirigir para você na Arábia Saudita e também precisa de permissão de um homem para poder viajar.
E assim as leis vão limitando a mulher e cerceando sua liberdade.
Mas várias vezes eu já pensei em como isso pode ser comparado à cultura machista tão predominante na América Latina.
Meu professor de português tentou me explicar uma vez a diferença da palavra “sexism” (sexismo) em inglês para “machismo”. “O sexismo é algo ruim”, ele disse, “mas o machismo, não – é uma forma de proteger as mulheres”. Confesso que ainda estou tentando entender as diferenças “positivas”.
Seja “proteção da honra” das mulheres ou machismo, o resultado é o mesmo. Mulheres sendo consideradas pessoas inferiores, cidadãs de segunda classe.
E o machismo é algo difícil de ser quebrado, como diz a feminista Catalina Ruiz-Navarro, que é colombiana e mora na Cidade do México. Homens na América Latina muitas vezes se orgulham de ser machistas e muitas mulheres gostam do estilo “protetor” deles.
“É uma crença muito latina”, diz Ruiz-Navarro. “Se ele não é ciumento possessivo, ele não quer estar com você, ou não te ama. Homens são ensinados a serem assim e mulheres são ensinadas a quererem isso.”
O que é liberdade?
Desde que me mudei de novo para a América Latina, eu perdi as contas de quantas vezes me perguntaram como era ser uma mulher morando no Oriente Médio. “Deve ter sido tão difícil”, as pessoas dizem. Para ser sincera, morar em cidades como a Cidade do México muitas vezes é pior.
Muitas das minhas amigas mulheres sorriem quando ouvem essa resposta de mim, mas outras rejeitam com veemência. “Mulheres aqui são livres”, disse uma. “O que há de errado com receber um elogio na rua? Eles estão apreciando sua beleza”, comentou outra.
Se a sua “liberdade” no caminho para o trabalho é cerceada por comentários sexuais abusivos e ameaçadores e se eles fazem você se sentir um objeto, e não um ser humano, eu pergunto: isso é liberdade de fato?
Depois de passar algum tempo em Havana, capital de Cuba, também sendo assediada o tempo todo, a palavra que vem à cabeça é “encurralada”, e não “livre”.
Estatísticas
Para onde quer que você olhe, as estatísticas são deprimentes.
No Egito, a mutilação genital feminina foi proibida desde 2008 – mas números oficiais mostram que mais de 90% das mulheres no país com menos de 50 anos passaram por mutilação genital.
Um estudo da ONU em 2013 indicou que 99,3% das mulheres egípcias passaram por algum tipo de experiência de abuso sexual.
Mas comece a pesquisar e você vai perceber que as estatísticas na América Latina também são chocantes.
Uma pesquisa recente feita pela YouGov da Thomson Reuters Foundationapontou que, de todos os transportes públicos mais perigosos para mulheres no mundo, três estão na América Latina.
Na Cidade do México, eles tentaram acabar com o assédio com o uso de trens só para mulheres no metrô, mas não raramente eu vejo homens entrando nesses vagões, ignorados pelas autoridades.
Mulheres e a lei
A América Latina conseguiu avanços gigantescos nos últimos tempos, com líderes feministas em vários países, incluindo Argentina, Chile e Brasil. E os países latino-americanos se comprometeram na Convenção de Belém do Pará, em 1994, a melhorar os direitos das mulheres e implantar leis de violência contra a mulher.
Mas o que está na lei é uma coisa, e a realidade é outra.
Nem na América Latina, nem no Oriente Médio a lei protege a mulher de maneira adequada contra violência sexual.
Nos Emirados Árabes Unidos, houve casos de mulheres terem denunciado estupro e acabarem presas, acusadas de adultério.
Países como o Brasil e o México estão entre os 10 mais perigosos para ser uma mulher.
Isso não é para ser um artigo que limita as questões envolvendo sexismo à América Latina e ao Oriente Médio. Longe disso. Isso é para falar sobre minha experiência trabalhando tanto na América Latina, quanto no Oriente Médio como uma mulher – os paralelos, as peculiaridades e os paradoxos.
Eu entendo que essa é uma questão mundial, que tem realidades distintas em sociedades distintas – ricas e pobres, conservadoras e liberais. Inclusive, muitos dos meus amigos no Oriente Médio e na América Latina usam a Europa como um exemplo a ser seguido.
Mas não muito tempo atrás, um amigo britânico que tinha por volta de 30 anos ficou surpreso quando eu disse que meu marido mudou de país por causa do meu emprego. Ele respondeu: “Mas, com certeza, quando você tiver filhos, você vai começar a segui-lo aonde ele for, né?”
Ele teve sorte que eu não tinha uma garrafa de água para acertá-lo.
Exemplos de abusos e violência contra a mulher na América Latina
- De acordo com a ONU, uma mulher é agredida cada 15 segundos em São Paulo, a maior cidade da América Latina
- No México, mais de 120 mil mulheres são estupradas por ano – uma a cada quatro minutos
- De acordo com o Observatório de Feminicídio do México, 1.258 meninas e mulheres desapareceram entre 2011 e 2012 só no Estado do México. Entre 2011 e 2013, 840 mulheres foram mortas e 145 delas são investigadas como feminicídio
- Cerca de 53% de mulheres bolivianas entre 14 e 49 anos relataram terem sofrido violência física ou sexual, de acordo com a Organização Pan Americana de Saúde.
- Cerca de 38% de mulheres no Equador dizem que bater na esposa é algo justificável pelo menos por uma razão.
Katy Watson
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