Revista vexatória: esperança de que o STF proíba essa grave violação de direitos humanos, por Maíra Fernandes e Natália Dalmazo

27 de fevereiro, 2025 Conjur Por Maíra Fernandes e Natália Dalmazo

“Pediram pra eu tirar toda minha roupa inclusive as roupas íntimas, agachar, levantar os seios e abaixar três vezes consecutivas , na frente dos meus filhos”. Mulher, parda, DF [1].

O Supremo Tribunal Federal retomou, neste mês de fevereiro, o julgamento sobre a constitucionalidade da prova obtida por revista vexatória em visitantes do sistema penitenciário (ARE 959.620).

No plenário virtual, em 18 de outubro de 2024, a maioria dos ministros da corte já havia sido formada, contra a medida, sob o fundamento de que esse tipo de revista configura uma grave violação aos direitos humanos. No entanto, um pedido de destaque do ministro Alexandre de Moraes reiniciou a votação, preocupando organizações e movimentos sociais que trabalham o tema e esperam que o STF mantenha sua decisão anterior, demonstrando o efetivo compromisso do País com o combate à tortura e à violência contra a mulher [2].

A tentativa de abolição desta grave violação os direitos humanos é uma luta de décadas, capitaneada pelo movimento de mulheres, movimento negro e por movimentos contra o cárcere e a tortura. Durante os anos de 2014 e seguintes, foi lançada por diversas organizações a campanha Pelo Fim da Revista Vexatória, que buscava, justamente, apresentar a gravidade da violação a partir de depoimentos das mulheres que passaram pelo procedimento [3]. À época, mesmo ainda sem a aprovação de uma legislação nacional, nove estados já haviam erradicado a sua prática, ao menos formalmente.

No escopo desta mesma campanha, foi também publicado um Boletim da Rede de Justiça Criminal que apontava que, em 2015, apesar de 3.5 milhões de revistas terem sido realizadas em São Paulo, somente em 0.02% dos casos foram encontradas drogas ou celulares com visitantes [4], evidenciando que não são as avós, esposas e filhas de presos as responsáveis pelo ingresso de itens ilegais nos presídios.

Dez anos depois, a realidade permanece a mesma. O que está em jogo é o direito à liberdade, dignidade e integridade de milhões de meninas e mulheres no país, que visitam unidades prisionais cotidianamente. Nenhum tipo de revista no mundo extramuros se compara ao procedimento vexatório realizado nos presídios brasileiros.

A verdade sobre a revista nos presídios e o que a torna vexatória

A revista que chamamos de vexatória, como regra, consiste no desnudamento forçado de visitantes do sistema prisional, socioeducativo ou dos próprios presos e presas, de modo a buscar em seu corpo algum item ilegal ou irregular. Neste procedimento, nenhuma pessoa é poupada: nem mesmo crianças, mulheres jovens ou adultas, idosas, deficientes ou grávidas. Embora as revistas ocorram em visitantes de ambos os gêneros, indistintamente, basta olhar uma fila de unidade prisional para se perceber que a maioria é formada por mulheres. Mulheres negras.

Em relação às visitas, ela normalmente é caracterizada pelo desnudamento completo em algum espaço separado, no qual a mulher fica sozinha ou com outras mulheres que também passaram pelo procedimento, tendo que se agachar por pelo menos três vezes em frente a um espelho no chão. Essa prática, por si só, já é humilhante. Mas, não bastasse, são muitos os relatos de que a revista é acompanhada por toques de agentes, pedidos para que as mulheres “abram” mais as cavidades íntimas e por xingamentos contra as visitantes.

Já em relação aos presos e às presas, a revista é, normalmente, realizada em público, seja no retorno da visita, após banho de sol ou quando há uma inspeção na cela. É comum ver cenas na mídia, especialmente de pátios de unidades, de pessoas nuas umas próximas às outras justamente para se submeterem a essa prática indigna. O Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro, em seus relatórios sobre Mulheres e Meninas Privadas de Liberdade, tanto o de 2017 [5] como o de 2022 [6], apontou o quanto essa prática diversas vezes se materializa em LGBTQIAP+fobia. Mulheres trans e homens trans são colocados na frente de mulheres cis e homens cis para a prática, em um momento de extrema exposição e de inegável constrangimento. Os relatos informam a sensação de humilhação, violência e invasão da privacidade.

A despeito de todas as críticas, esta prática segue sendo naturalizada em 2025. A ideia de que ela é necessária não é fundada em dados ou pesquisas – todos os estudos indicam o oposto – mas, sim, em estereótipos de gênero e racistas, que colocam em toda população negra o estigma de pessoas perigosas e que observa o corpo da mulher enquanto um mero objeto a ser vasculhado, um “veículo” de risco permanente que entra e sai do sistema prisional. A naturalização desta violência específica contra a mulher negra está inserida em um cenário em que o racismo e a misoginia ainda ditam a sociedade brasileira.

É de amplo conhecimento que a violência contra mulher é endêmica no país. Dados do Anuário de Segurança Pública [7] produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicam o crescimento de todos os índices de violência contra mulher. Foram 258.941 casos de violência doméstica, 778.921 casos de ameaça, 8.372 casos de tentativa de homicídio contra a mulher, 2797 tentativas de feminicídio e 1467 feminicídios. As principais vítimas são mulheres negras, indicando a persistência do racismo enquanto um agravante da misoginia.

Esse cenário se repete quando analisamos a violência sexual: um caso a cada seis minutos em 2023, com 83.988 vítimas e uma taxa de 41.4 a cada 100 mil habitantes, sendo a maioria das vítimas, mais uma vez, negras. O Atlas da Violência [8], feito pelo mesmo instituto de pesquisa e pelo Ipea, indicou que a existência das mulheres o Brasil é marcado por uma vida cercada por distintas formas de violência: 0 a 9 anos negligência, de 10 a 14 anos violência sexual, 15 a 69 física e mais de 70, negligência. No total foram 221.240 meninas e mulheres sofrendo violência no país.

Neste mesmo sentido caminha a violência de Estado na qual a prática da revista vexatória também se insere. O Anuário de Segurança Pública apontou que a violência de Estado seguiu em escalada, com 6.393 jovens vítimas de homicídio por intervenção policial, dos quais 82.7% são negros. A chance de uma pessoa negra morrer por consequência da ação do estado é 3.8 vezes maior do que a de uma pessoa branca. O Brasil ainda é o terceiro país com maior número de presos do mundo, segundo a Secretaria Nacional de Políticas Penais [9], com 888.272 pessoas cumprindo pena no país, sendo 668.051 em celas físicas. A taxa de aprisionamento nacional é de 329.2 para cada 100 mil habitantes. Em relação ao perfil daqueles que sofrem com encarceramento, 63.9% do total é negros e entre as mulheres 62.8% são negras. Ao observarmos a execução da pena os dados são ainda mais preocupantes, havendo 1.428.441 processos no Sistema de Execução Penal, dos quais 804.658 tratam de pena privativa de liberdade [10].

Todos estes dados visam dar um cenário para nos auxiliar a perceber não só o racismo como uma peça chave da violência de gênero e de estado, mas que há uma forma de violência específica que está nessa interseção, que é a violência de estado contra a mulher. Ela é completamente invisibilizada, não possui nenhum dado concreto e por isso segue não sendo priorizada (ou sequer percebida) enquanto uma questão endêmica do país. Isso é especialmente grave, quando tratamos de violência sexual, ou mais especificamente, de tortura sexual.

A revista vexatória é incompatível com tratados de direitos humanos e direitos das mulheres

A Convenção de Belém do Pará, da qual o Brasil é signatário, define a violência contra mulher como qualquer ato ou conduta baseada no gênero que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, podendo ser perpetrada em âmbito doméstico, comunitário ou por ação realizada pelo Estado ou seus agentes. O próprio artigo 4.b e d da Convenção impõem o dever de respeito à integridade física, mental e moral e a vedação da mulher sofrer tortura. Por sua vez, a Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Desumanos, Degradantes e Cruéis [11] indica que nenhuma situação pode ser utilizada como justificativa para prática de tortura. Em síntese, tais documentos vedam em absoluto a tortura sexual e não trazem qualquer brecha para a sua realização por agentes públicos.

O Estado brasileiro deve, segundo as duas convenções, abster-se de tais práticas e ter zelo para prevenir, investigar e punir tanto a violência contra a mulher como a tortura no país. Igualmente, segundo a Convenção para Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher [12], em seu artigo 2.f, é dever estatal tomar todas as medidas para abolir práticas legislativas, regulatórias, costumeiras ou práticas que representem discriminação de gênero.

No entanto, há uma vulnerabilidade desproporcional experienciada pelas mulheres negras, especialmente as que estão privadas de liberdade ou que são atingidas pelo cárcere, que dá pistas de como, apesar da farta legislação neste sentido, a revista vexatória ainda não ser vista como algo que necessita ser abolida, urgentemente.

Em 2001, a relatora especial da Comissão de Direitos Humanos sobre a Violência contra Mulheres, ms. Radhika Coomaraswamy [13], indicou que a interação da discriminação de gênero com outras formas de discriminação racial, étnica, econômica e social, pode gerar situações com duplo ou triplo grau de vulnerabilidade. Ela apontou que os impactos da violência de gênero são devastadores em meninas e mulheres, que podem ter dificuldades para acessar os seus direitos básicos em toda a sua plenitude. Afirmou a especialista que, por conta de sua racialização, mulheres negras terminam sofrendo maior risco de violência e abuso por parte de policiais e, ao mesmo tempo, a violência contra mulher tende a ser tratada como um assunto de menor importância pela polícia, por promotores, médicos legistas e poder judiciário.

Dez anos depois, a Relatora Especial das Nações Unidas sobre Violência contra Mulheres, Rashida Manjoo, em seu relatório sobre as causas e consequências [14] desse mal, apontou a necessidade de uma abordagem holística para reconhecer o direito de toda a mulher a viver livre de violência e descriminação, entendendo que toda violência por ela sofrida é um ato de discriminação, especialmente quando voltadas para grupos de mulheres lidas enquanto não integrantes do conceito hegemônico de feminilidade, seja por seu pertencimento racial ou por questão socioeconômica. Para a relatora, a natureza sistemática da violência contra mulheres, especialmente quando racializada, é elemento central para que a questão não receba a atenção devida.

Revista vexatória: prática que merece ser proibida, sem exceções

A compreensão deste contexto nacional e geral da violência contra mulher e sua naturalização é especialmente importante em relação à revista vexatória, não só para explicar por que ela acontece e é naturalizada, mas também para indicar os riscos de se abrir exceções a seu uso.

A base do voto do ministro Alexandre de Moraes no ARE 959620 indica a possibilidade de se abrir exceções para prática de revista íntima, quando não houver aparelhos de scanner corporal, ou quando houver fundada suspeita. No entanto, no cenário de violência crônica contra a mulher e a população negra, não há dúvidas que a exceção ao uso da revista vexatória se tornará regra, seja porque as unidades não terão scanners corporais, seja porque os agentes dirão que havia “fundada suspeita”.

Não à toa, a pesquisa da Rede de Justiça Criminal atestou a manutenção da prática anos depois de sua proibição em São Paulo, relato esse reforçado por uma pesquisa de 2021 [15] feita pela mesma Rede em conjunto com a Agenda Nacional pelo Desencarceramento.

Assim, afirmar que a falta, quebra ou a não aquisição de scanners pode autorizar, em caso de “fundada suspeita”, a prática da revista vexatória é o mesmo que liberá-la novamente a nível nacional. A maioria das unidades prisionais já possui sofisticados aparelhos de scanner corporal e, ainda assim, realiza a revista vexatória. É dever do Estado assegurar que eles estejam em funcionamento e a sua utilização como único método de inspeção em visitantes, sem brechas para excepcionalidades que, não raro, se tornarão regras, baseadas em estereótipos de gênero e no perfilamento racial.

Em síntese, a decisão do STF pode banalizar — sob uma alegada excepcionalidade — a prática de uma verdadeira tortura contra mulheres.

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