Os filhos da violência doméstica também são vítimas do agressor. O Brasil ignora as crianças que testemunham suas mães em situação de perigo dentro de casa. Elas carregam consequências por toda a vida e precisam de atendimento e proteção
(O Globo, 02/07/2019 – acesse no site de origem)
Eu me lembro como se fosse ontem. Um flash me vem nítido na memória. Tinha 7 ou 8 anos e ainda vivia com minha família em Itaporã, no Mato Grosso do Sul, onde nasci. Tentei algumas vezes proteger minha mãe das agressões do meu pai. Ele sofria de alcoolismo e, quando bebia, brigava, ameaçava e agredia a minha mãe. A agressão física aconteceu de fato uma vez. Um tapa. Era comum ele tentar feri-la com arma ou faca, o que configurava uma agressão psicológica e moral terrível. Eu era a única filha entre meus cinco irmãos que entrava na frente dela na tentativa de protegê-la do meu pai, que eu também amava. Essa história tem 50 anos e ainda me dói.
São lembranças que marcaram minha infância tanto quanto a violência doméstica que sofri na maturidade dos meus 54 anos. As crianças também são vítimas indiretas de um agressor. E carregam consequências por toda a vida.
Eu era pequena quando, ao lado de minhas quatro irmãs e do meu irmão, vi meu pai pegar um revólver que guardava em casa e mirá-lo na direção de minha mãe, ameaçando matá-la. Pouco me lembro das razões exatas da briga, mas ainda hoje reconstituiria a cena em detalhes. Ele era um homem ciumento. Naquela hora, lembro do meu pavor de criança. Achei que ele realmente fosse matá-la.
Foi um momento tenso para todos nós. Meu pai imediatamente desviou o revólver apontado para minha mãe e atirou na parede da sala. Nossa casa não era de alvenaria, mas de madeira. A bala atravessou a parede. Ele foi dormir. Minha mãe, triste, fez o jantar e ficou em um canto da casa. Fomos deitar. No dia seguinte, nenhuma palavra sobre o assunto. Assim era o jeito como ela conseguia lidar com aquela situação dramática e conosco. Creio que tentava nos proteger dessa forma, com o silêncio. Fingíamos que nada havia acontecido. Mas era uma rotina tensa.
Em outra ocasião, a cena com o revólver se repetiu. Morávamos na zona rural e criávamos animais no quintal. Tínhamos um porco, que criávamos para assar no Natal. Isso era comum no interior. Meu pai pegou o revólver e, furioso com a minha mãe por algo que não lembro mais, novamente apontou a arma para ela e depois disparou um tiro contra o animal. Lembro até hoje do grunhido agudo antes do bicho morrer. No dia seguinte, como um ato banal e sem maiores consequências, minha mãe cozinhou o porco como se nada tivesse acontecido. Mas nenhum de nós, filhos, quis comer.
A gente tentava superar os problemas, mas a vida seguiu assim por muitos anos. Até hoje não gosto de Natal. Meu pai bebia e eu lembro de brigas terríveis nessa data. Uma vez um espeto de churrasco foi usado por ele como arma. Ela correu e se trancou no quarto. Estava tão transtornado que, com raiva, cravou o utensílio com toda a força no próprio punho esquerdo. Embora fosse violento com a minha mãe, ele não agredia as filhas.
Tudo isso me despertava sentimentos contraditórios na infância. Ao mesmo tempo que temia que minha mãe um dia fosse morta, eu tinha pavor que meus pais se separassem. Para uma criança que, possivelmente, não compreendia a dimensão e a gravidade da violência cometida, a ideia da separação parecia ainda mais desesperadora. Tinha medo que meu pai fosse embora e eu nunca mais o visse.
Ao longo dos anos, a criança que eu fui não sabia bem quando o pânico era maior: se quando meu pai ameaçava matar minha mãe ou quando ela dizia que ia se “desquitar” dele. Quando não estava alcoolizado, meu pai era uma pessoa extraordinária. Gosto de lembrar quando me dava responsabilidades, ainda pequena, como ir pagar uma nota promissória na cidade. Eu me sentia importante. São sentimentos infantis que precisam ser compreendidos nesse contexto.
Um dos grandes conflitos que tive na vida foi o dia em que minha mãe resolveu partir sozinha com os filhos para o Rio de Janeiro. Ela não aguentava mais tanta violência. E queria uma nova vida. Me lembro que ela tomou o ônibus em Campo Grande (MS) conosco, os filhos. Duas paradas depois, uma surpresa: meu pai subiu no ônibus e disse que iria junto para o Rio. Eu me compadecia e me solidarizava com a minha mãe. Mas confesso que senti um certo alívio de saber que ele embarcaria conosco naquela aventura para um lugar desconhecido.
Meus pais viveram sob o mesmo teto por 24 anos. As dificuldades eram imensas no Rio e as brigas prosseguiram. Eles se separaram quando, em mais uma ameaça de morte, minha mãe teve finalmente a coragem de denunciar. Ela fez um boletim de ocorrência numa delegacia em Pilares. A patrulhinha foi até a minha casa e meu pai, alcoolizado, passou uma noite preso. Ele voltou para casa no dia seguinte. Acredito que foi a gota d’água para minha mãe. Creio que aconteceu com ela o que acontece com todas as mulheres que passam por esse tipo de violência. Chega o dia em que você decide tomar uma atitude. O dia de dar um basta. É uma coragem genuína e repentina. Chegou o dia em que a minha mãe, depois de tantos anos, não viu mais sentido em manter o casamento com meu pai e pediu, de fato, a separação. Eu já tinha 18 ou 19 anos. Estava no meu início de carreira como modelo.
Ele voltou para o Mato Grosso do Sul. Vivia de vender terras. Eu passei a ajudar financeiramente minha mãe e meus irmãos, que continuaram no Rio. Ele, de longe, se orgulhava da filha famosa. Mas nos víamos pouco. Meu pai morreu aos 58 anos, seis anos depois da separação. Morreu do coração, com complicações de saúde decorrentes do alcoolismo.
Revisitar a história é isso. Imagine o quanto nós, filhos, suportávamos aquela rotina, presenciando a violência e o abuso psicológico, achando que a vida era aquilo. Assistíamos às cenas terríveis, rezávamos para tudo acabar e, no dia seguinte, seguíamos a vida normal. Acho que minha mãe só superou, de fato, tudo o que viveu quando eu me manifestei publicamente sobre a violência doméstica que sofri. Antes, era como se existisse um consenso mútuo e mudo de toda a nossa história familiar – porque nós nunca falávamos. Quando fiz a denúncia, no entanto, abriu-se um espaço para haver uma reparação que também incluía a história dela. Isso, logicamente, impactou toda a família.
O que conto sobre a minha história é muito comum em várias regiões do Brasil. É importante que se desenvolvam políticas públicas para os filhos da violência. É a forma de resgatá-los de traumas e evitar que esses padrões se repitam. Ser testemunha ocular da violência que acontece dentro de casa configura o abuso psicológico em si. A Lei Maria da Penha, criada há 12 anos, tem sido importante nesse capítulo. Um avanço recente é a escuta protegida de menores. A lei garante o depoimento, uma única vez, em um lugar acolhedor. E prevê ainda que os filhos tenham direito a medidas protetivas contra o agressor.
Mas, no geral, pouco se avançou em políticas voltadas para as consequências sofridas pelos filhos de mulheres agredidas. Muitos deles são órfãos do feminicídio. Neste momento, milhares de crianças estão sendo expostas em seus lares a essa triste cena: ver o pai agredir a mãe. Precisamos falar sobre isso. Com rigor, responsabilidade e urgência.
Luiza Brunet é modelo, empresária e ativista no combate à violência doméstica.