Discurso em torno de casos extremos de abuso sexual, como o de Gisèle Pelicot, na França, têm resultado em mais proteção para mulheres? Episódios na Índia, México e Alemanha mostram que ainda há muito a se fazer.
A violência de gênero, ou seja, contra uma pessoa devido ao seu gênero biológico ou social, é onipresente. De acordo com estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), quase uma em cada três mulheres em todo o mundo já sofreu violência física e/ou sexual.
São muitos os motivos, portanto, para a proliferação de atos de repúdio à violência contra a mulher em todo o mundo. Um dos mais conhecidos é o #MeToo, nos Estados Unidos, cujo braço no Brasil reuniu recentemente denúncias de assédio sexual que derrubaram o ex-ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida. Há campanhas como a #Aufschrei (gritaria ou indignação, em alemão), na Alemanha, protestos em massa no México e na Índia contra o estupro e o feminicídio, além do caso de Gisèle Pelicot, na França, que virou ícone dessa luta.
Campanhas como essas contribuem para a conscientização da sociedade, porém uma mudança real só acontece se políticos e Judiciário seguirem o exemplo.
França: “Para que a vergonha mude de lado”
O caso de Gisèle Pelicot chocou a França e o mundo inteiro: a senhora de 72 anos foi drogada pelo marido durante anos e abusada por ele e por outros homens. Ele filmou 200 incidentes, imagens que agora servem como prova no julgamento em andamento, com outros 50 acusados. Um aspecto importante do caso é que Gisèle Pelicot fez uma campanha explícita para que o julgamento ocorresse publicamente, “para que a vergonha mude de lado”.
Para demonstrar seu apoio a Pelicot e a outras vítimas de violência sexualizada, milhares saíram às ruas em cidades da França em setembro, entoando: “Somos todas Gisèle!”.
Mas, embora tenha trazido de volta ao foco na França aspectos fundamentais da violência contra a mulher, isso não basta, afirma Elke Ferner, presidente da organização UN Women Deutschland. Ela acredita serem necessárias mudanças na legislação penal francesa. “Não existe nem mesmo uma regra de ‘não é não’, segundo a qual atos sexuais contra a vontade reconhecível da outra pessoa seriam puníveis. Em vez disso, na França, deve haver uma resistência ativa para que se possa falar de estupro perante um tribunal.”
Índia: discriminação e misoginia persistem
No início de agosto, o estupro e o assassinato de uma médica residente de 31 anos causaram indignação na Índia. Ela foi encontrada morta num hospital estadual em Calcutá, capital do estado de Bengala Ocidental. O último de muitos casos de estupro no país mais populoso do mundo provocou protestos em massa. Os funcionários do hospital estadual entraram em greve, e Bengala Ocidental endureceu as penas por estupro.
Para muitos indianos, o crime traz lembranças do brutal estupro coletivo de uma estudante num ônibus na capital Nova Delhi, em 2012. A jovem de 23 anos morreu devido a graves lesões internas. Na época, os protestos e a indignação pública foram ainda maiores do que agora, observa Ranjana Kumari, ativista dos direitos das mulheres indianas.
A diretora do Centro de Pesquisa Social em Nova Délhi e presidente da Women Power Connect, uma coalizão de organizações de mulheres considera situação preocupante.
“Quando se olha os dados, vê-se que o crime aumentou. Não só a violência doméstica, mas também crimes no espaço público, na forma de estupro e também de intimidação e assédio nas ruas. E especialmente chocante e inquietante é que mais crimes estão acontecendo com mulheres provenientes de comunidades minoritárias. E dos dalits desprivilegiados”, frisou, referindo-se ao grupo mais baixo no sistema de castas da Índia.
A violência sexual reflete as estruturas patriarcais e misóginas da sociedade indiana, na qual a evolução das normas sociais é lenta, acrescentou Kumari. Embora as leis tenham sido reformuladas e novos programas lançados nos últimos anos, muito não sai da teoria para a prática.
Houve casos repetidos de autoridades que tentaram encobrir fatos, ou funcionários que se recusaram a aceitar denúncias de mulheres. “Os casos levam de 10 a 15 anos para chegar a qualquer tipo de justiça. Portanto, o que está falhando são essas instituições. É preciso começar a fazer justiça, caso contrário os criminosos ficam mais ousados”, explica a ativista.
Mexicanas se levantam contra o feminicídio
No México, centenas são vítimas de feminicídio todos os anos – assassinadas por serem mulheres, geralmente por seus (ex-)parceiros. De acordo com dados oficiais, houve 827 feminicídios em 2023, sendo possível que o número de casos não relatados seja significativamente maior. Especialistas atribuem as altas taxas de feminicídio no México ao machismo cultural profundamente enraizado, e a um sistema de Justiça problemático, que oferece pouca proteção às mulheres.
A alarmante extensão da misoginia mortal gerou um movimento feminista que ganhou impulso nos últimos anos, transformando-se em revolta social. “Os protestos em massa contra o feminicídio e outras formas de violência de gênero desempenham um papel importante no avanço da conscientização pública e na responsabilização das autoridades”, observa a advogada americana Julie Goldscheid, especialista em violência de gênero.
Devido ao alto nível de atenção do público, o Judiciário e os políticos têm abordado a questão cada vez mais, contudo até agora não se concretizaram medidas abrangentes e eficazes. Muitos mexicanos estão agora de olhos atentos a Claudia Sheinbaum, a primeira mulher presidente do país, que já anunciou sua intenção de ampliar a proteção feminina.