(IBCCRIM, 01/03/2016) A Lei 11.719/2008 alterou o art. 387, IV, do CPP para autorizar a fixação, na sentença condenatória, de valores mínimos à reparação do dano causado pela infração penal. O dispositivo não delimitou a natureza do dano, tampouco impôs restrições à sua fixação, deixando, assim, ao intérprete a análise sobre o seu alcance. O dispositivo ainda não angariou completa aceitação no universo jurídico, pois há controvérsia acerca da natureza do dano – se apenas material ou também moral – e da necessidade de dilação probatória para se aferir as consequências específicas do delito e a quantificação do prejuízo.
Contudo, recentemente, o STJ admitiu que a utilização da expressão “prejuízos” pelo legislador inclui danos materiais e morais. E da Jurisprudência da Corte Superior extrai-se que, uma vez formulado pedido expresso pelo Ministério Público ou pela vítima, não há que se falar em cerceamento de defesa. É o que se apreende, por exemplo, do REsp 1.533.468/DF e do REsp 1.514.125/DF.([1] )
Não obstante o posicionamento do STJ, muitos operadores do Direito continuam a apresentar objeções à inclusão do dano moral nas hipóteses de reparação na sentença penal, em especial por vislumbrarem a inviabilidade da dilação probatória para aferição da extensão e da quantificação do prejuízo, de modo que esse instrumento de enorme importância no enfretamento à violência de gênero, dentro ou fora do âmbito doméstico-familiar, acaba invalidado ou subaproveitado.
O dano material, em sede de violência de gênero, é facilmente identificável, já que quase sempre decorre da destruição dos bens móveis da residência, objetos pessoais e aparelhos eletrônicos, veículo ou do próprio imóvel. Demanda, entretanto, instrução para quantificação do valor da indenização. O dano moral na mesma temática, por sua vez, deve decorrer da mera inferência das consequências do delito perpetrado.
Com efeito, muitas modalidades de dano moral decorrem diretamente do ato ilícito e são apuradas in re ipsa, eis que dispensada a prova de prejuízo concreto, pois, pela dimensão do ato ilícito suportado pela vítima são presumidos o sofrimento, a dor, o desconforto e o constrangimento. São condutas nas quais o padrão moral médio da sociedade considera inegável e, portanto, evidente o abalo psíquico.
Dentre as espécies de dano moral in re ipsa encontram-se reconhecidas na Jurisprudência do STJ: a inscrição indevida em cadastro de devedores inadimplentes (AgRg no AREsp 597.814/SP); o atraso de voo e extravio de bagagem (REsp 612.817/MA); o extravio de talonários de cheques pela instituição financeira (AgRg no AgIn 1.295.732/SP); a impossibilidade de registro de diploma de curso não reconhecido pelo MEC (REsp 631.204/RS); a multa de trânsito indevidamente cobrada (REsp 608.918/RS); a inclusão indevida de nomes de médicos em guia orientador de plano de saúde (REsp 1.020.936/ES).([2] )
O rol supracitado compreende eventos desagradáveis nas relações cotidianas em que, uma vez provada a prática ilícita, a lesividade na esfera anímica do prejudicado é reputada como ínsita à ilicitude suportada. A obrigação de reparar decorre, portanto, da irrefutável afronta à dignidade da vítima.
Nessa esteira de pensamento, é preciso compreender a violência de gênero, doméstica ou não, sob o viés dos direitos humanos. O Brasil é signatário da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), do sistema internacional da Organização das Nações Unidas, e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção Belém do Pará), do sistema regional da Organização dos Estados Americanos. Dessa forma, obriga-se ao aprimoramento dos mecanismos nacionais de prevenção e repressão à violência contra as mulheres, compreendida como “violação dos seus direitos e liberdades fundamentais”.([3] )
O Direito Penal deve ser interpretado de forma sistêmica e precisa dialogar com esses instrumentos legais humanitários. Deve servir ao propósito da reeducação social, com compreensão da temática como severa ofensa aos direitos humanos das mulheres, de forma que não se pode admitir interpretação que reduza a violência de gênero a bagatela, inferior até mesmo à inclusão de nome em serviço de proteção ao crédito ou ao atraso de voo, demandando-se produção de prova de que o ultraje ao corpo ou à psique da mulher tenha realmente acarretado humilhação, e não mero aborrecimento. É o que revela a interpretação progressista do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios:([4] )
“Deixar de se fixar um valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração penal, nestes casos, é premiar o agressor doméstico e, em última análise, fomentar a cultura do ideologismo patriarcal, os quais induzem relações violentas entre os sexos, já que calcados em uma hierarquia de poder. Acrescente-se que a configuração do dano moral, em razão da natureza dos direitos da personalidade violados (no caso, integridade física e psíquica), independe de prova, sendo in re ipsa, bastando, pois, a comprovação da respectiva conduta lesiva”.
É relevante observar que a sentença condenatória sempre foi título suficiente para a reparação material e moral, com liquidação no foro cível. O dispositivo ora examinado somente pretendeu imprimir celeridade processual, permitindo o sentenciamento líquido, em valores mínimos, no corpo do decreto condenatório penal. De forma alguma o legislador quis ampliar o repertório de dificuldades ou impor, além da prova de autoria e materialidade, a obrigação de comprovação do abalo psíquico específico suportado pela vítima, condição que, historicamente, nunca foi exigida.
O valor, a seu turno, não é aferido aleatoriamente. Ao contrário, pode ser obtido com raciocínio lógico, sopesando-se a gravidade do tipo penal com o quantum comumente fixado para os demais tipos de dano moral presumido. Saliente-se que, no juízo criminal, a reparação moral deve ser arbitrada em valor mínimo, sem óbice da apuração do dano efetivo no juízo cível, na forma do art. 63, parágrafo único, do CPP.([5] )
Dessarte, não há necessidade de dilação probatória para determinar montante conforme classe social do agressor ou da vítima, porque – para reparação mínima da dignidade da pessoa humana – não deve haver diferença entre pobres e ricos ou sábios e incultos. A honra, a carne, a alma e a liberdade da mulher mais humilde devem ter o mesmo valor intrínseco que aquelas da mulher mais abastada, intelectual ou poderosa.
Se houver danos morais de maior monta, decorrentes de transtornos psicológicos ou psiquiátricos indeléveis, de exposição pública ou de desgaste da imagem profissional, dentre outros, esses serão liquidados, detalhadamente, no juízo cível. Foi exatamente esse o espírito da lei ao estabelecer a competência do juízo criminal apenas para a fixação dos danos mínimos. Por consequência, tal juízo sequer poderia instruir a causa na integralidade – a ponto de apurar os danos efetivos – sob pena de fixar reparação no valor total, esgotar o tema e acarretar, com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, nulidade ou óbice para que a vítima rediscuta os valores no juízo competente.
Finalmente, como sentenciou o juiz Marcus Abreu de Magalhães([6] ) ao impor a reparação por danos morais in re ipsa,essa postura judicial se justifica também porque o Direito Penal é de ultima ratio. Esclareceu que, por adotar a corrente garantista da intervenção mínima, não poderia, em contrassenso, julgar a conduta ilícita como mero aborrecimento, pois, se assim fosse, sequer seria tutelada pelo ordenamento criminal.
Está-se, segundo ele, diante do caráter subsidiário e fragmentário do Direito Penal, cujo emprego somente se dá para a solução de conflitos que não possam ser solvidos com as demais ferramentas disponíveis no arcabouço jurídico-legal, destinando-se ao enfretamento das questões intoleráveis, ou seja, aos fragmentos extremados dos outros ramos.
Assim sendo, a melhor interpretação do art. 387, IV, do CPP, em sede de violência de gênero, é a da reparação mínima, com fixação líquida de danos morais in re ipsa, que se presumem havidos na totalidade dos episódios de violação dos direitos humanos das mulheres.
Ana Lara Camargo de Castro – Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul desde abril de 1997. Titular no Núcleo de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher desde novembro de 2006. Especialista em Inteligência de Estado e de Segurança Pública com Direitos Humanos, pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e pelo Centro Universitário Newton Paiva Master of Laws em Criminal Law, with Honors, pela State University of New York (SUNY/BUFFALO).
Notas
[1] Disponíveis em: . Acesso em: 21 jan. 2016.
[2] Disponíveis em: . Acesso em: 21 jan. 2016.
[3] Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres/ONU.
[4] ApCrim 20120610103217APR, acórdão 882.660, j. 16.07.2015. Disponível em: . Acesso em: 28 jan. 2016. No mesmo sentido a ApCrim 20120610017086APR, acórdão 899.767, j. 08.10.2015.
[5] Transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV do caput do art. 387 deste Código, sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido.
[6] Sentença condenatória em audiência, nos Autos 000247249.2014.8.12.0009, Comarca de Costa Rica, Mato Grosso do Sul.
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