(Jornal do Brasil, 05/08/2015) Porque as pessoas estão mais sujeitas a serem objeto de violência e até vítimas de homicídio em seus próprios lares e pelas mãos de alguém a quem amam? E ainda: por que as mulheres que são humilhadas e sistematicamente objeto de sevícias e lesões, continuam a viver com seus algozes? Por que após uma cena de violência física segue-se, por vezes, um momento de redenção, em que os parceiros experimentam a sensação de estarem mais ligados emocionalmente? Essas e outras questões desafiam a perícia de psicólogos, terapeutas familiares, advogados e de todos quantos se interessem pelo problema.
A violência doméstica possui características e contornos próprios.Nas relações violentas existe sempre um relacionamento compartilhado, que é a raiva, que pode ou não ser exteriorizada pela mulher, mas ela está lá, internamente. Iniciada uma discussão ela não tende a contemporizar, argumentos negativos são respondidos com argumentos negativos, o que em psicologia é chamado de reciprocidade negativa. Assim, como o companheiro, ela não minimiza as discussões, o que derruba o mito da mulher passiva e traumatizada, que se submete aos maus tratos e os suporta complacentemente.
Do ponto de vista institucional muito se tem procurado fazer para coibir a violência doméstica no plano internacional. Nos Estados Unidos, por exemplo, muitos estados aprovaram leis específicas, diferenciando essa forma de violência dos outros crimes em geral. A grande razão para esse movimento legislativo foi, pitorescamente, obrigar a polícia a tomar ação diante do abuso doméstico e tratar a questão, não como algo sem importância, ou “em que estranhos não devam se meter”, mas como um fato delituoso, que deve levar à prisão do suspeito diante da evidência da prática da violência.
Mas a realidade da proteção à mulher de ameaças e ataques físicos ainda é bastante incipiente mesmo no mundo desenvolvido. A polícia continua bastante relutante em efetuar prisões, promotores hesitam diante da acusação e magistrados não se sentem à vontade para impor penas correspondentes à injúria física. Um estudo conduzido pela Universidade de Brandeis, em Massachusetts, demonstrou que 90% dos agressores de mulheres deixam de ser processados e que, ainda quando levados à Corte e condenados, as sentenças são tão leves que eles praticamente nem mesmo vivem a experiência oficial.
As crianças também são vítimas de uma relação desajustada e violenta, não apenas quando sofrem diretamente abusos e agressões, mas pelo simples fato de conviverem em um ambiente doente e absorverem o que ali se desenrola. Os pesquisadores estimam que a interação entre as agressões à mulher e aquelas dirigidas às crianças seja em torno de 30% a 40%. Tem sido também apontado que meninos expostos a esse tipo de ambiente têm uma alta predisposição a se engajarem nesse mesmo padrão de comportamento na vida adulta.
No Brasil, alguma coisa já está sendo feita, havendo-se de se reconhecer o valor da criação das delegacias de polícia de proteção à mulher e a legislação especializada de proteção à mulher, e sobre a infância e o adolescente. Mesmo lidando com recursos incipientes, com a improvisação de métodos de trabalho, e a falta de treinamento adequado e continuado de agentes, muitos homicídios foram prevenidos na cidade do Rio preservação da dignidade, da integridade física e da vida dessa classe especial de vítimas.
Em regra, a maioria dos crimes denunciados pelas vítimas junto às Delegacias de Defesa da Mulher (órgão que tem a atribuição administrativa de apurar esse tipo de delito) é cometido contra a pessoa, cujas lesões físicas ou psíquicas, são apuradas com a técnica e cuidados peculiares à especialidade e delicadeza dessa classe de descompasso familial. Essas questões são disciplinadas, em sua quase totalidade, pela Lei n. 11,340/2006, a popular Lei Maria da Penha, considerada pela ONU como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento das questões da violência contra a mulher.
O Superior Tribunal de Justiça, recentemente, editou nova súmula, pela qual, “A suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha (Súmula 536). Tais institutos funcionariam como “uma ponte de ouro” para o agressor retornar sobre as suas próprias pegadas e reconstruir a vida em família, ou no grupo.
O ideal seria a adoção de sistema administrativo/judicial, de natureza restaurativa. Seria uma legislação de corpo inteiro, de proteção da vida familiar, em seus múltiplos aspectos e que possa trazer soluções de adaptação dos atores dos conflitos, deixando a pena criminal como o ultimo recurso. Urge que se comece a tratar da reforma da legislação atualmente em vigor, tratando a realidade globalmente, holisticamente, digamos criando-se um Estatuto da Família ou da Vida em Comum, consciente das regras e princípios já constantes do Código Civil e legislação civil especial.
João Mestieri é Advogado, especialista em Direito Penal / Criminal – Professor da Puc /RJ – Direito Penal, Direito Processual Penal,Criminologia e Sociologia do Direito.
Acesse no site de origem: Violência doméstica, por João Mestieri (Jornal do Brasil, 05/08/2015)